domingo, 25 de maio de 2008

Capítulo 4: A nova casa de Anne Marrie

Na sala os pequeninos móveis foram colocados cuidadosamente nas estreitas paredes amarela e branca. Os quadros mostravam grandes campos floridos e vasos vastos de flores. Num canto uma mesinha sustentava um grande buquê de margaridas frescas. O caminho até os quartos e a cozinha era pequeno e apertado, mas o branco da parede deixava tudo mais claro e arejado, as janelas com grades arabescadas num tom de rosa claro. No teto o gesso desenhava grandes curvas que cuidadosamente se enrolavam em uma espiral no centro.

Incomodado com o pequeno sofá que mal cabiam suas ancas, Otton se revirava no móvel pra encontrar uma posição mais relaxante, mas já desistindo de tentar, encarou a filha sentada na sua frente em uma poltrona extremamente pequena num tom amarelo ovo.

Anne tremia dos pés a cabeça, apesar de não gostar muito do seu pai, pelo menos tinha a consciência de respeitá-lo. Afinal ela não sabia mediar o amor que sentia pelos outros, mas não era burra o bastante, e tinha o mínimo de respeito estimado por Otton. E naquele momento digamos que ela estava amando mais a sua ex-recém-amiga como nunca amou seu pai na vida.

_Como que você está aqui? Tá tudo bem? Quero dizer. Vocês estão vivendo de quê? _Começou Otton o interrogatório.

Anne pensando no melhor para sua irmã disse:

_Eh... A mãe da Ju... Da Juliana, foi quem deu a casa e está pagando todas as contas. _Disse Anne, perceptivelmente nervosa.

Juliana estava na cozinha fazendo café nas coisas novas da casa recém comprada. Queria assim pensar Anne. Mas ela sabia que Juliana estava provavelmente tentando ouvir a conversa no quarto ao lado.

Otton olhava para casa que pra ser uma casa de boneca só faltou ser menos, o que não estava muito longe de ser. Aflito ele passava a mão no rosto, sem encarar a filha e Anne sabia que isso era mais difícil pra ele do que pra ela.

_Você... Já melhorou dos ferimentos? Eu soube pela sua irmã, mas já está tudo bem né? _Disse Otton com a mão na garganta, engolindo seco.

_Pai? _Perguntou Anne no tom mais alto usado até agora pelos dois, desde que entraram para dentro.

O céu já voltava a clarear do lado de fora.

Otton olhou assustado e sabia o que aquilo significava.

_Eh... _Começou Otton. _...Seu avô me disse uma vez que quando minha mãe lhe faltou o respeito ele a deixou trancada durante dias no quarto, até que ela viesse pedir desculpas. Ele falava essas coisas pra me deixar com medo, mais do que eu já tinha dele. Então sempre vinha com umas histórias dessas pra me contar. E em todas elas ele dizia no final à frase que vem me dando forças pra suportar isso tudo que aconteceu nos últimos tempos com... Você. _Otton olhava para Anne que não demonstrava nenhuma receptividade com seu texto nostálgico. _ “Todos os heróis foram vilões um dia.”.

Demonstrando no olhar molhado todo o significado daquela frase, não teve total compreensão do outro lado da sala, e Anne ainda olhava para ele estável emocionalmente então Otton continuou seu discurso emocionado:

_Quando eu tinha a sua idade mais ou menos eu não entendia o que essa palavra realmente poderia dizer, qual era o significado dessa bobagem que saía toda vez da boca daquele velho maldito. Eu não podia entender. Até que vocês apareceram na minha vida. Sua mãe, Alice e você. Tudo que fiz até agora era para que vocês fossem um dia alguém de bem, pessoas bondosas. Então impus regras a vocês e esperava que fossem cumpridas. Então pude enfim entender a frase tola que meu avô dizia todos os dias. Que de tola não tinha nada, era de uma profunda sabedoria e mesmo que eu não o pudesse perdoar por seus atos primitivos de educação que me deu, eu pude extrair daquele velho a coisa que moveu minha vida pra frente, que me fez ter uma família exemplar. Eu tinha orgulho de voltar pra casa todas as noites e encontrar minhas três garotas e por mais que eu brigasse ou xingasse elas continuavam me amando. Mas quando eu gritava, brigava e colocava vocês de castigo eu jamais dizia a frase maldita que me perseguira por toda vida, não seria justo colocar um cargo grande desses em cima de duas garotas que de longe nunca seriam o grande vilão que me tornei. Achava justo morrer com a herança do velhote. Vocês nasceram pra serem sempre as mocinhas e nunca as vilãs, nunca. _Otton secava as lágrimas que caiam com a mão antes mesmo que elas chegassem ao meio do rosto.

Anne mudara o modo de assistir ao desabafo do pai, agora ela estava de lado ao invés de d’frente, e não porque sentia nada pelo pai é que o neném não parava de chutar. Mas pra ela eram somente dores, ela nem sabia se o neném tinha já os pés. Mas Otton continuou mesmo assim sem a comoção da filha pelo seu discurso.

_Eu era o monstro, sabia, aceitava e exercia bem essa função. _Otton quase parou quando viu Anne balançar a cabeça positivamente. _Eu era o vilão, e estava preparado para o papel contanto que vocês virassem pessoas melhores, como meu avô fez comigo. Mas comecei a perceber que a recompensa de no final ser considerado herói não ia realmente acontecer, quando ouvia você e sua irmã reclamado nos quartos, como as portas não ficavam fechadas eu podia ouvir. Eu ouvia sempre, todas às vezes, todos os dias a pessoa terrível que eu era. Isso acabou comigo, eu virei quem eu sempre desprezei o meu avô. Mas eu não podia mais conter, estava tudo tão fora de controle, tão perdido com o tempo, eu não conquistaria vocês novamente se começasse a lhes dar balas ou deixar vocês saírem à hora que quisessem.

_Você devia ter tentado. _Disse Anne, sem poder conter as palavras na boca.

Otton sem querer lhe lançou um olhar de cortar o ar, o bom e velho olhar de vilão de que ele falava. Mas percebendo o que acabara de fazer voltou a falar antes que o monstro adormecido viesse à tona:

_Então... Eu tentei mudar, mas sem sua mãe para me dar apoio foi difícil, incontrolavelmente saiu das minhas decisões racionais, tudo passou a ser instintivo. Quando descobri aquele dia que você estava grávida... Você pode imaginar como eu fiquei por dentro? Você não era mais minha mocinha, o meu esforço foi em vão. _Otton enterrava o rosto nas mãos, mas em segundos voltou a erguer a cabeça mais ainda olhava as mãos molhadas com as lágrimas salgadas. _Colocar você pra fora, foi pra mim como jogar o lixo fora, a fruta estragada da caixa, antes que ela contaminasse o resto. Eu não podia aceitar você assim, ir contra meus princípios, minha educação, meu fardo. Mas... _Otton olhou pra Anne que agora secava as primeiras lágrimas do seu rosto perfeito.

Agora ele não conseguia mais impedir as lágrimas de escorrerem rapidamente do seu rosto, Anne voltara para sua posição inicial. O visível arrependimento do pai a emocionou muito. Será que ela poderia amar ele como nunca foi capaz de fazer?

_Mas aqueles dias sem você lá em casa foram torturantes, suas coisas, seu cheiro, seu sorriso... Oh seu sorriso foi o que, mas doeu ficar longe, lindo como o da mãe... A Alice até que tentava me convencer a te aceitar de volta depois do que aconteceu com você e aquele lá...

_O Humberto. _Disse Anne novamente sem contar as palavras dentro da boca.

_É. O Humberto, eu não queria que você passasse por isso filha, te protegi tanto na vida, daria a minha pela sua para te ver fora de perigo, quando descobri o que ele fez... Tentar te matar? Olha eu não gosto nem de pensar nisso agora, da vontade de p... _Otton Suspirou fundo e continuou rapidamente. _Enfim. Quando pensei na possibilidade de perder você. Quero dizer, e se você morresse lá naquele apartamento como que eu ficaria, como eu me sentiria? Talvez o pior dos homens. Talvez um bom pai, por ter dito “Eu avisei”. Mas a que preço o orgulho me cobraria. Sua vida? Minha mocinha? Meu anjo?

Otton se sentava agora apenas na pontinha do sofá com as mãos nas mãos de Anne que sem as mãos pra conter as lágrimas molhara todo o rosto.

_Eu precisava sacrificar algo, em troca da minha filha. Em troca do meu bem maior... Você! O que adiantava ser herói depois de morto, se eu jamais receberia essa fama. Estou aqui pra começar a tentar ser herói, agora. Em vida. Agora que eu posso receber a glória toda, o amor e um olhar gentil em minha direção e não medo. Eu quero te pedir minha filha minhas humildes desculp...

Anne abraçou o pai como nunca fez antes. Nunca com tanto amor.

Os dois permaneceram ali abraçados até que as lágrimas secaram no ombro do outro. Juliana agora trazia uma bandeja de café com cuidado. Tremendo de emoção a ex-recém-amiga de Anne Marrie chegou à sala e pai e filha se soltaram sentando com cuidado cada um para um lado. E com desculpa de ir ao banheiro Anne se pôs de pé e seguiu muito feliz para o banheiro em seu quarto.

Olhando para o espelho Anne abriu um sorriso exagerado. Era bom sentir mais alguém ao seu lado. Agora mais do que antes, seu pai, irmã e amiga nunca foram tão amados quanto eram agora. Absurdamente amados, somente perdendo para Humberto, que só de lembra Anne se excitava e ao mesmo sentia medo. Sentindo a barriga novamente ela se lembrou também do amor que tinha que dar a coisinha em sua barriga e temendo nunca amar ele muito como amou Beto, ela tirou o sorriso do rosto...

TOC! TOC! TOC!

...Anne se assustou com as batidas na porta.

_Anne? Seu pai quer ir embora está te chamando para se despedir. _Disse Juliana, do outro lado da porta. _Você está bem?

_Estou. _Disse Anne, olhando para o espelho de novo.

Anne ergueu um sorriso e se sentindo maravilhosamente bem com os seus amores, agora muito, ela voltou à sala onde encontrou o pai de pé na porta.

_Pai, o senhor já vai? _Perguntou Anne.

_Oh minha filha, você está bem?

_Tô pai.

_O que era no banheiro?

_Nada...

_É que a sua amiga me falou que...

_Tá tudo bem pai, relaxa. _Disse Anne.

Otton ficou olhando Anne por alguns segundos com os olhos ainda molhados, balançou a cabeça positivamente, fez um breve aceno com as mãos pra Juliana e saiu pela porta. Anne seguiu o pai pelo jardim, o céu voltara a sua cor normal, o sol brilhava forte no alto. Acompanhada agora de Juliana, Anne seguiu seu pai com os olhos durante seu caminho de volta.

A cozinha mais parecia um tabuleiro de xadrez, nas cores preto e branco os azulejos alternando as cores preenchiam todas as paredes do cômodo, os móveis vermelhos deixavam o ambiente com cara dos anos 50. Juntas as duas amigas lavavam a louça depois do lanche que fizeram após a visita de Otton. Juliana lavava e Anne enxugava.

_Anne agora fala aqui só pra mim. Você perdoou mesmo o seu pai? _Perguntou Juliana enquanto ensaboava uma xícara.

_Ju que pergunta é essa? Claro que perdoei, eu o conheço e sei que foi muito difícil pra ele fazer aquilo. _Disse Anne sinceramente.

_Não. Eu quis dizer que... Assim. _Juliana agora parava com as mãos sobre a pia e olhava pra Anne. _Você acha que ele estava falando a verdade? A Alice está falando pra ele te perdoar desde quando ele te expulsou de casa, porque agora, hoje?

Anne ficou olhando para amiga, tentando procurar uma resposta que confirmasse a credibilidade de Otton. Mas não conseguiu pensar em nada muito inspirador:

_Ah, sei lá. Cada um tem seu tempo. Ele foi bem convincente. Ah Ju pára! Você ouviu a conversa toda.

_Eu não...

_Ah pára! Não tem problema não, eu faria o mesmo.

_Foi mal. _Disse Juliana. _É que eu fiquei preocupada, não esperava que seu pai lhe pedisse perdão, ou desculpas. Meu pai me contava umas histórias dele que eu e minha mãe ficávamos até com medo. Minha mãe pra me fazer medo me falava o Otton tá vind...

Juliana parou de repente quando percebeu que estava ofendendo o pai da amiga. Mas ao contrário do que Juliana pensou Anne estava gargalhando.

_Do quê você está rindo? _Perguntou Juliana automaticamente.

Anne se recuperou da crise hilariante que teve e começou:

_É que... Eu e a Alice também tínhamos medo dele quando a gente era pequena. Nós brincávamos de casinha e ele sempre era o assaltante que seqüestrava nossas bonecas. Tudo de mentirinha. _Anne olhou pra janela e continuou. _No meu prédio todo mundo tinha medo dele, ele sempre teve aquela cara fechada, o único que fazia ele rir era a mamãe, assim pelo que eu lembro. Depois que ela morreu, ele nunca mais riu, de nada. Por isso eu to rindo porque você ficou com medo de eu brigar com você. Devia ver sua cara de assustada.

Juliana forçou uma risadinha, enquanto pegava outra porcelana pra lavar.

_Sei lá né. Você acabou de fazer as pazes com ele e tudo e eu aqui falando mal dele. _Disse Juliana.

_Sem problemas. Eu conheço meu pai e sei do que ele é capaz. Mas confesso que fiquei surpresa com a visita dele hoje também. _Disse Anne, com o ar desconfiado. _Na verdade agora que a minha ficha caiu. Eu não to dizendo que o meu pai é um monstro ou coisa assim, mas a fama dele fala por si própria. Qualquer pai faria o mesmo que ele fez ou pior, mas ele está sendo muito gentil né?

_O meu pai. _Começou Juliana, enquanto passava um prato molhado para Anne. _O meu pai também me colocou pra fora de casa, mas ele nunca foi como seu pai, assim tão bravo. Na verdade ele é até bonzinho demais sabe, foi pelo menos. Sabe o que parece? Que seu pai e o meu trocaram de personalidade.

_É parece mesmo. _Anne secava um prato sem nem ao menos olhar para as mãos, agora ela repassava na memória a conversa que ela teve com o pai mais cedo, minuto a minuto. Palavra por palavra.

Sem encontrar resposta para explicar o novo comportamento do pai, Anne repetia insistentemente cada palavra na cabeça. A história de vida e as coisas que Otton falou faziam sentido para ela, pelo menos por enquanto.

Deitada na cama Anne olhava para o teto enquanto passava carinhosamente a mão na barriga a fim de despertar nela algum sentimento. O medo que ela tinha de não amar o bebê como deveria a tirava o sono, ela se conhecia, sabia que podia amar ou não, e de forma exagerada. Se o amor pela criança não começasse agora, ela pensava que não poderia surgir depois.

Passou sol, passou lua, as folhas caíram, a chuva molhou os gramados do jardim, a blusa foi de P para G em pouco tempo. Cinco meses se passaram e Anne repetia o que fazia toda noite desde que seu pai veio pedir perdão aquela tarde. Acariciava a barriga tentando produzir um sentimento que era até aquele momento um fardo para ela, o amor. Ela sentia há muito tempo algo pelo bebê, não amor. Isso não. Ela sentia o pé dele na costela, toda vez que ele chutava. Sempre muito bem arrumada, Anne mesmo com uma melancia na barriga desfilava com os mais diversos modelitos e não somente das grávidas que se vestiam com vestidos floridos e macacões para gestantes, Anne despertava inveja até para as que estavam normais, as não grávidas. O seu corpo continuava o mesmo, os braços muito finos e as pernas longas e secas. Anne não se incomodava com o volume extra, adorava a experiência de ser “gorda” por uns meses.

Na rua todos comentavam das duas vizinhas adolescentes que moravam no castelo cor de rosa. Todos as evitavam por causa das notícias que envolviam Anne e Humberto, apesar de que tudo já estivesse sido esquecido pela mídia, os vizinhos faziam questão de lembrar quando passavam em frente ao castelo, ou quando as encontravam no supermercado. Havia alguns que até falavam que as duas eram gays. E Anne chegou a ouvir isso de uma mãe que correu para tirar sua filhinha de perto dela enquanto ela caminhava pelas ruas calmas do condomínio, mas continuou reto e sorrindo. Juliana não agia da mesma maneira, chegou a discutir com um senhor já de idade que virou para as duas na padaria e disse: “Na minha época isso dava forca”.

Anne entendia a amiga e fingiu uma outra vez sentir raiva de um comentário bobo de uns rapazes da mesma idade enquanto passeavam no shopping para fazer compras para o menino. Ah é!

Era um menino. Todos diziam para ela não perguntar do sexo da criança para os médicos. Mas porque tanto mistério? Anne se perguntava todas as noites enquanto acariciava sua barriga. Ela pensava que quanto mais conhecesse o bebê talvez fosse mais fácil para o seu coração aceitá-lo.

As duas recebiam poucas notícias de Humberto. Somente as que Alice trazia de vez em quando em suas visitas semanais ou pelas revistas da alta sociedade que ainda faziam questão de lembrar na legenda das fotos o fato de Anne ter tentado matar o grande herdeiro do milionário Eduardo Fonseca.

A cada edição da revista Society, Humberto saia nas fotos das mais badaladas festas com uma garota diferente e entre uma e outra Anne reconheceu o nome na legenda da famosa Poliana Seranova, a garota da faculdade, que pelas notas mantinha um relacionamento bumerangue com Humberto, de idas e voltas.

Mas sabendo das recentes aparições do amado na Society Anne se recusava a olhá-las quando Juliana sempre chegava com uma nas mãos. Mas Juliana sempre comentava com ela, e Anne às vezes até sentia ciúmes, tamanha era insistência de Juliana no assunto “Humberto”. Mas fazendo força para não transparecer e começar uma briga com a amiga Anne se limitava em dizer: “_Nem reparei que era ele.”. Fazendo Juliana parar de falar sobre ele na hora.

Juliana ainda estava indo a escola, e quando chegava em casa contava a Anne como foi o seu dia. Na maioria das vezes chegava contando que foi parar na diretoria por causa das constantes brigas com outras meninas que insistiam em zombar da cara dela e falar mal da amiga. Os meninos também não ficavam atrás quando o assunto era atormentar Juliana. Ela contava a Anne que eles sempre a chamavam para sair enquanto davam gargalhadas com os amigos. Não estava fácil para Juliana agüentar a barra sozinha, se pelo menos ela tivesse alguma amiga do lado, alguém para lhe dar apoio. Ela já até havia comentado com Anne que estava pensando em largar os estudos e esperar o bebê nascer para que as duas enfrentassem a situação juntas, mas sempre quando recebiam a visita de Soraia, mãe de Juliana, elas descartavam essa possibilidade. Soraia acreditava que quanto mais cedo Juliana se formasse, mais fácil seria para o seu marido perdoar a filha. Como fez Otton.

O quarto estava escuro, somente a luz fraca do abajur projetava pequenos elefantes amarelos que rodeavam aquele ambiente feminino. Forçando os olhos pra deixá-los fechados tentando atrair o sono, Anne estava no 224º dia de gravidez e a quase 100 acariciava a barriga tentando amar o menino. Como aconteciam todas as noites ela não conseguia dormir e por isso ouvia Juliana chegar de suas constantes noitadas. A amiga sempre chegava de carro, e Anne sabia que não era boa coisa. Porque se o cara com quem ela estava saindo tinha um carro, significava que ele era mais velho e também sabia que a última experiência com homens mais velhos da amiga não acabou bem. Sem querer ser chata ou dar uma de Otton, Anne nunca questionou a amiga sobre a identidade misteriosa do homem do carro, e Juliana também nunca tocou no assunto. “Talvez Juliana tenha medo de eu roubar o namorado dela de novo.”. Pensou Anne, que nem cogitava a idéia de se envolver nos mesmos problemas outra vez, primeiro que seria difícil ela amar outro homem de novo como amava Humberto e segundo que no estado em que se encontrava ninguém iria trocar um belo corpinho jovem, por um corpinho vestido de ovo.

Anne ouviu a porta do carro bater do lado de fora da janela e algumas risadinhas abafadas, ela esperava ouvir depois daquilo o barulho do carro partindo pela rua e assim poderia dormir sossegada, mas diferente disso a outra porta do carro bateu, isso fez Anne abrir os olhos. Agora encarando o teto levemente iluminado ela percebeu as risadinhas se aproximarem da casa e logo em seguida a porta da sala se abrindo. Anne continuou deitada com a mão na barriga, mas havia parado de esfregá-la, o bebê podia esperar ser amado mais tarde. E olhando em direção da porta do quarto entre aberta ela viu por debaixo dela a luz da sala acender e em seguida ser apagada, e fazendo um esforço para ouvir a conversa ela se pôs de pé na parede que dividia os dois cômodos:

_Pára! _Disse Juliana baixinho. _A Anne tá dormindo logo ali, ela pode acordar.

_Que nada, ela nem vai ver. Deve estar sonhando com o Beto. _Disse o homem.

Anne percebeu que ele a conhecia, mas ela não reconhecia a voz.

_Já disse que ela superou isso né. _Disse Juliana. _Ela nem gosta de falar nele, nunca falou na verdade. Ela tá sofrendo.

_Que nada. _Continuou o homem com a voz ofegante, com certeza estava beijando Juliana enquanto falava. _Ela só tá sofrendo por não poder ir correndo pra ele agora, e evita falar sobre ele pra disfarçar a falta que ela sente dele.

Anne ficou chocada como alguém podia a entender tão bem.

_Sério? _Juliana dava pequenos gemidos. _A Society só fala dele ultimamente, mas ele se orgulha do que fez com ela, orgulha sim.

_E não é pra menos. _Disse o homem.

Anne agora esperava ouvir a voz de Juliana a defendendo da opinião desse homem de voz grossa. Mas ouviu somente uma risada junta a do homem.

_É certo isso que a gente tá fazendo? _Perguntou Juliana obviamente ao homem.

_Qual outro jeito Ju? _Disse o homem. _É você lhe dando com a situação.

_Mas porque a gente não fala logo? _Disse Juliana.

_Porque não daria certo. Nós já conversamos sobre isso, tudo há seu tempo, pra ser perfeito precisamos de tempo. Já não tá tudo combinado?

_Tá! Mas...

_Mas o que Ju, todo mundo vai saber na hora certa, eu não vou dar o fora tá beleza? Relaxa amor, relaxa.

_Calma! _Disse Juliana.

Anne colou mais os ouvidos na parede, e percebeu que Juliana havia se afastado do homem.

_Juliana! Pára de se preocupar. Quando for a hora vai dar certo. _Disse o homem.

_Eu sei. É que eu sou ansiosa pra caramba. E é tudo muito grande, não vou conseguir esconder isso muito tempo, eu moro com ela. _Disse Juliana.

Anne arregalou os olhos, teve certeza de quem estava com a amiga na sala era o seu amado Humberto, mas a frase a seguir tirou todas as suas dúvidas.

_Você tá com medo de que eu seja igual ao Humberto né? _Disse o homem. _Bom eu não sou, graças a Deus. Eu não vou te deixar na mão como ele fez, mas se você engravidar ai é outra história.

Anne teve certeza, não era Humberto, então sorriu.

Os dois sorriam na sala enquanto Anne voltava pra cama, feliz. Não pela amiga, que provavelmente ia cair em mais uma cilada, mas feliz por ela, por que essa cilada não tinha nada haver com Humberto e a amiga, juntos. E diferente das outras noites Anne dormiu rapidinho embalada pelos gemidos de gozo dos dois na sala. Dormiu sorrindo e com as mãos embaixo do travesseiro e não na barriga. É, e o bebê ainda não era amado.

O sol batia nos olhos de Anne, quando ela acordou às nove da manhã. Levantando com dificuldade para enxergar na claridade que invadia o quarto àquela hora, ela se lembrou rapidamente dos fatos que antecederam seu melhor sono depois de 100 noites. Sem razão aparente ela sorriu e correu pra janela para ver como era o carro do homem misterioso, mas ele já não estava onde Anne imaginou que ele estivesse e se lembrou que Juliana provavelmente já havia acordado pra ir à escola. Ainda feliz e descansada ela arrastou os pés até a sala levemente bagunçada. E para sua surpresa viu os materiais da amiga sobre o sofá, e logo sentiu o cheiro de chá de camomila vindo da cozinha. Correu o máximo que podia com o barrigão e viu a amiga sentada na pequena mesinha perto do fogão com as roupas amassadas. Juliana se assustou com a chegada surpresa da amiga àquela hora na cozinha, e devagar colocou a xícara sobre a mesa e engoliu o chá rapidamente, com certeza estava quente, pois antes de falar Ju pôs a mão sobre a boca para não expulsar o líquido pra fora:

_Anne? O que você está fazendo acordada uma hora dessas? _Disse Juliana.

Anne ainda não sabia se contava a amiga sobre a noite anterior. “Vou contar.” Pensou.

_NÃO! _Gritou sua consciência.

Anne continuou ali parada olhando a amiga enquanto pensava no que dizer a ela. “Ela não vai entender, vai pensar que eu estava espionando. E o pior, que a ouvi transando e pensar que eu, sei lá, estava gostando, ou gozando.”. “Não! Definitivamente não vou contar.”

_Eu ouvi você chegando ontem. _Disse Anne, num total desacordo com ela mesma. Dormiu demais, talvez isso a tenha deixado um pouco perturbada. Mais?

Juliana olhou para janela, pras paredes, pro chão, pra xícara, para os bolinhos em cima da mesa, e pra Anne, que se não conhecesse a amiga o bastante jurava que ela era um avestruz procurando um lugar pra enfiar a cabeça.

_Como?

Anne bateu a mão na testa, enquanto procurava sair da situação e achou o que seria a melhor solução.

_Só ouvi você entrando. Acordei com o barulho da porta lá da frente. Mas nem vi que horas eram. _Disse Anne.

Juliana já havia parado o olhar em Anne:

_Não ouviu mais nada não.

_Eu não, tinha tomado um remédio e dormi rapidinho, um daqueles calmantes da sua mãe que estão lá no banheiro. _Mentiu Anne enquanto se sentava à mesa e pegava um dos bolinhos.

_Ah tá! _Disse Juliana, com expressão de alívio.

_Eu deveria escutar alguma coisa?_Anne sorria.

_NÃO! _Gritou Juliana corada nas bochechas.

_Credo Ju. O que você tava aprontando heim menina? _Disse Anne tentando parecer ignorante diante daquela situação.

_Nada Anne, desculpa amiga. É que hoje tinha prova e eu perdi, sabe. Cheguei muito tarde ontem, não consegui acordar hoje. _Disse Juliana enquanto preparava o chá pra Anne. _Mas você tem certeza que não sabia que horas que eu cheguei?

_E que horas eram? _Perguntou Anne, que realmente não sabia que horas eram na hora da rapidinha da amiga na sala com o homem do vozeirão.

_Sabe que eu não sei. _Disse Juliana forçando um sorriso.

Anne continuou para o silêncio não invadir a cozinha e Juliana não suportar mais segurar o sorriso na boca:

_O que você estava fazendo na rua heim mocinha? _Disse Anne, como se ela não soubesse.

_Eu? Nada. _Desmanchando na hora o sorriso Juliana voltou a enfiar a xícara na boca.

_Sei. _Anne queria continuar a questionar a amiga para que ela percebesse que realmente ela não sabia de nada, mas ficou com medo de se trair de novo. Vai saber né.

As duas continuaram ali sentadas enquanto se deliciavam com o chá, conversando agora sobre outro assunto, a capa da Society da semana. Anne odiava aquilo, detestava aquela revista, pois ela sempre a fazia lembrar de Humberto e o pior, ele sempre estava com outra mulher que não era ela. Envolvida no assunto ela continuou arrastando a conversa até que correu para o banheiro pela décima vez para fazer xixi, ela fazia muito aquilo nos últimos meses, passava mais tempo no banheiro do que em outro lugar da casa.

A gravidez representava para Anne tudo que havia de ruim, além de transformar a vida dela por completo, como ela ter perdido o amor de sua vida, ter tentado matá-lo, quase ter sido linchada na rua várias vezes, ser conhecida na vizinhança como a grávida assassina ou como lésbica sorridente, dividir uma casa estranha com sua maior ex-inimiga e ter que dividir o amor que ela tinha antes só por Humberto agora entre quatro, o pai, a irmã e a recente melhor amiga, ela tinha que fingir, fingir estar feliz com aquilo tudo, fingir que não amava mais Humberto, fingir que amava o bebê e ainda sorrir. Mas ela estava disposta a enfrentar, esperava com o tempo amar o bebê, que até agora ela nem havia pensado num nome e mesmo sabendo disso não se esforçava em pensar em nenhum outro a não ser HUMBERTO.

Os dias seguiram e Juliana ainda continuava a chegar de carro toda a noite com o tal homem, ou não. Anne só escutava o carro chegar agora e, mas nunca mais ele entrou em casa de novo. Talvez porque Juliana estava com medo de acordar a amiga que podia alguma coisa que não deveria ouvir. Como normalmente fazia, Anne levantou e foi direto ao banheiro naquela manhã fria de setembro, como já passava das doze da manhã Juliana já estava em casa e pra variar na cozinha onde passava maior parte do dia tirando as horas no carro é claro. Sentada na troninho de louça encarando os azulejos da parede oposta e passando a mão nos cabelos sedosos que desciam até as costas soltos e voando com a leve brisa da manhã que entrava pelo basculante do banheiro Anne pensava no que iria fazer depois que saísse dali, do banheiro. Não tinha muitas opções é verdade, mas existia duas, almoçar de uma vez ou tomar café da manhã. Era uma decisão difícil a tomar, pois dependendo do que o bebê queria naquele dia a escolha errada resultaria em muitas contrações. Mas rapidamente mesmo sabendo disso Anne decidiu. Iria almoçar. E antes que pudesse mudar de idéia a dor começou, e corroeu-a por dentro, era forte demais, segurando no sanitário para não cair no chão e se contorcer por inteiro ela manteve ali congelada até a dor passar. Passados dois minutos, uma eternidade para ela que sentiu cada segundo se arrastar, Anne não se assustou pelo fato de ainda estar fazendo xixi. E tirando as mãos das laterais do vaso cuidadosamente como se a dor fosse ativada por sensores a movimentos ela calmamente voltou a sua posição inicial e depositou carinhosamente a mão sobre a barriga:

_Tá bom! Vamos tomar café então, eu nem queria almoçar mesmo. _Disse Anne com lágrimas nos olhos, resultado da sua contração.

E agora havia percebido que havia um belo tempo que estava sentada ali. Fazendo xixi?

Tentando olhar por entre suas pernas a fim de descobrir a fonte de tanta urina Anne então abaixou a cabeça sobre a barriga e se arrependendo amargamente do que havia feito, começou a sentir a mesma dor de novo. A dor era mais intensa agora, ardia forte e sem que ela mesma pudesse controlar soltou um grito agudo. O que foi um combustível para dor que aumentou incontrolavelmente e a fez gritar dessa fez mais alto e mais forte, como se a tivessem torturando.

_ANNE? _Gritou Juliana do outro lado da porta.

Anne estava tentando se levantar, para abrir a porta, mas sem poder se sentou novamente obrigada.

_É o bebê. Tá doendo minha barriga. _Anne dizia calmamente, enquanto as lágrimas escorriam pelo seu rosto.

_Abre aqui Anne. _Disse Juliana.

_Não consigo ficar em pé. _Disse Anne fazendo um esforço enorme para que o que saísse da sua boca fossem palavras e não gritos.

_VOCÊ CAIU? _Gritou Juliana, que agora forçava a maçaneta como se isso a fizesse entrar mais rápido.

_Não, eu to sentada. _Disse Anne com dificuldades entre um grito e outro.

_Anne? Calma amiga tá bem? Tenta levantar e abrir a porta. _Disse Juliana nervosa. _Você está tendo o bebê agora.

_O QUÊ? _Disse Anne, que encontrou forças do nada e num salto se pôs de pé e abriu a porta.

_Ai meu Deus, o que você está sentindo? _Disse Juliana que ajudava a amiga a chegar na sala.

_Não sei. Tá doendo muito. _Disse Anne agora no sofá, enquanto olhava a amiga correr até o telefone.

_A bolsa arrebentou? _Perguntou Juliana enquanto aguardava alguém responder na outra linha.

_É... Acho que sim... _Forçou Anne pra dizer. _...Eu fiz xixi uns dois minutos. Será que não era a bolsa?

_Sem dúvida. _Respondeu Juliana, que reconheceu a voz da Alice do outro lado do telefone.

_Alô? _Disse Alice com a sua voz meiga habitual.

_Lice? _Disse Juliana. _A Anne vai ter o bebê. AGORA!

domingo, 18 de maio de 2008

Capítulo 3: Uma Visita Para Anne Marrie

Enrolada em um casaco velho que pegou antes de deixar o apartamento de Humberto, Anne andava pelas ruas de São Paulo, debaixo da chuva ela procurava um táxi para voltar para o hotel onde estava hospedada. Depois de sair escondida do prédio do ex-namorado, enquanto o porteiro cochilava na guarita, Anne estava caminhando há meia hora. A chuva já tinha lavado o sangue da sua mão, mas o casaco estava vermelho e seu peito doía muito. Se segurando nas paredes para não cair ela andou por quarteirões e a cada passo enfraquecia mais e mais. Ao chegar a uma esquina movimentada ela viu tudo rodando, sem perceber e poder controlar a força nas pernas, ela estava no chão em meio à sujeira do centro da capital paulista. Em flashes repentinos ela percebeu algumas pessoas se aproximarem e até tocarem nela, com os olhos ainda fechados percebeu que seu corpo estava sendo colocado sobre algo. Num esforço para abrir os olhos ela rapidamente pode ver alguns homens vestidos de branco sobre ela. Mais tarde voltou a abrir os olhos, percebeu que estava num lugar limpo e seco, seu peito não doía mais e conseguiu ver ao lado da cama de um quarto claro e arejado uma mulher. Ouviu seu nome várias vezes. Sonhou com uma passarela de moda em que todos os seus conhecidos estavam na platéia, sua mãe andava sobre um salto alto com um casaco sujo de sangue, enquanto um homem sem cabeça escorregava sobre o sangue no chão, ela comia pães num campo verde e tomava vinho com Humberto, várias crianças pulavam em uma ciranda enquanto ela girava no centro com um vestido xadrez rodado, cada quadrado se misturava no ar enquanto ela caia sobre milhares de flores fumegantes e Juliana a arrastava pelo braço por um corredor estreito e sujo num gesto especialmente bruto Anne foi jogada para o auto, muito, muito alto por várias vezes e cada vez que descia das alturas sua respiração faltava até ela cair em uma rua velha e mal acabada e ser perseguida por dois tigres um albino e uma pantera negra.

Alice era responsável por Humberto ainda estar vivo. Depois de receber o telefonema do Hotel Royal avisando que Anne havia saído, ela sem pensar em outro lugar mais lógico do que a casa de Humberto, ligou para Juliana que lhe deu o endereço. Ao chegar ao apartamento e ver a situação de saúde que se encontrava Beto, tratou logo de chamar a ambulância e sair pelas ruas atrás da irmã. Assim que soube qual era o hospital em que Anne estava internada foi logo tratar de transferi-la para a clínica da família. Estava ao lado da irmã o tempo todo enquanto a irmã se recuperava do ferimento no peito depois da briga que teve com o ex-namorado. Uma semana se passou e Alice passou as noites no hospital, conversou com Anne poucas vezes, pois a irmã dormia muito. Otton se recusava a ajudar a filha, seu orgulho estava ferido, ele sofria sozinho, calado no quarto, mas não deixava que os outros notassem alguma comoção da parte dele pelo o que aconteceu com Anne.

A família de Humberto estava indignada e disposta a processar Anne, a prisão da garota confortaria os parentes e saciaria a sede deles por justiça, Humberto resistiu aos ferimentos por pouco, graças ao atendimento exclusivamente rápido que recebeu. Será que foi sorte dele ou a Anne que tinha muito azar? Apesar do cruel desejo de prender a garota todos sabiam que Anne era menor e não responderia nenhum processo, nem coisa parecida.

Anne virou notícia em todos os jornais, estampava as primeiras páginas da maioria dos tablóides, virou assunto de debates e discussões em escolas, organizações e programas de TV, que discutiam o comportamento dos jovens da época. Anne passou a ser exemplo de mau comportamento, os pais vigiavam mais as filhas a partir daquele dia e diziam com tom reprovador: “_Continue assim, que você vai acabar como Anne Marrie, a grávida assassina”. Ela dividia opiniões da população, uns acreditavam na inocência dela, outros defendiam o lado da família e amigos de Humberto, colocado no caso como o pobre namorado, vítima da louca Anne Marrie.

O clima na casa dos DeVille não era dos melhores, Alice brigava diariamente com o pai que ainda se recusava a ajudar Anne. Proibida de visitar a irmã, Alice era obrigada a sair escondida todos os dias para vê-la no hospital.

No dia em que recebeu alta do hospital Anne já acordada conversou com a irmã e sem derramar nenhuma lágrima, ela se manteve firme enquanto narrava à noite em que tentou matar seu namorado. Alice segurou para não dizer: _ “Eu te avisei.”. Mas ficou calada enquanto ouvia o terror que a irmã passou dentro do apartamento de Humberto, Alice às vezes não reconhecia a irmã, que desde pequena tinha algumas ações avessas a qualquer atitude de criança, parecia uma pessoa boa, mas alguns de seus atos eram estranhos e incompreendidos.

“O fato de ela ter tentado matar o namorado não era de se estranhar, afinal foi em legítima defesa”. Alice repetia essa última frase na cabeça, forçando a crença de que a irmã fosse normal como às outras pessoas. Mas era impossível, Anne Marrie, era realmente um ser humano singular, pelo menos dos que Alice tinha conhecimento. O último abraço descrito cuidadosamente por Anne, veio a confirmar ainda mais as teorias psiquiátricas de Alice. Anne amava demais as pessoas, todos. Na verdade Juliana Lessa nunca chegou a ser amiga de Anne Marrie, amiga de verdade mesmo nunca, sempre foi uma aproximação forçada por ambos os pais que se conheciam há muitos anos, por isso Anne a traiu, concluiu Alice. O que não justificava muita coisa, afinal será que a população entenderia dessa forma também?

Anne vestia agora uma calça jeans até o estômago de onde saiam até os ombros o suspensório xadrez colocado sobre a blusa rosa de manguinha fofas, que no formato lembravam pequenos morangos. Os cabelos castanhos cuidadosamente penteados, caíam sobre as costas e os ombros, no rosto esculpido por Deus, em uma de suas melhores obras, o rosa da maquiagem se destacava sobre a palidez aparente dos últimos dias de moribunda no hospital.

Alice entrou no quarto do hospital acompanhada de uma garota, praticamente na mesma idade de Anne. Juliana tinha os cabelos até os ombros e lisos como fitas de cetim, que podem também ser comparadas por outra característica, o brilho dourado que emitiam, mas seu rosto diferente do cabelo não era tão têxtil. E se houvesse algum tecido para compará-los, o linho seria apropriado rústico e grosseiro, o que não excluía a beleza da peça.

Anne se sentia poderosa, fora a beleza superior obviamente, ela saiu da história toda com algo que Juliana não conseguiu quando namorava Humberto, um filho. Naquele momento ela não sabia julgar se isso era bom ou ruim, ou se fora isso que movera Juliana até o hospital. Será que ela vai me agradecer por ter matado o Humberto? Anne riu quando acabou de pensar nisso.

É verdade. Diferente de todos Anne ainda acreditava que havia matado seu ex-namorado.

_Do quê você tá rindo Anne? _Perguntou Alice, que mesmo sabendo a resposta queria avisar a irmã no tom de voz especialmente modificado: “_Olha temos uma estranha aqui, e você está saindo do hospital depois de uma semana, se recuperando de um corte no peito que quase te matou, após ter tentado matar o próprio namorado e que ops!... Já foi namorado dela também.”

_Nada. _Disse Anne de cabeça baixa, aparentemente entendeu o recado da irmã.

Juliana evitava olhar para o rosto da ex-amiga, talvez nem tenha percebido o sorriso de Anne Marrie e olhando do teto para Alice começou:

_Tá doendo ainda?

Anne ainda envolvida em pensamentos hilários que respondiam a visita repentina se assustou com a voz da ex-amiga que não ouvia há tanto tempo. As palavras de Juliana arrepiaram os pelinhos da nuca de Anne. Estranho.

_Não, já parou. _Disse Anne, depois de um esforço enorme para deixar a voz audível. _O que você está fazendo aqui?

Alice olhou para Juliana que retornou com o olhar: “_Me tira daqui!” Mas Alice manteve o seu habitual olhar meigo e doce, se for possível imaginar isso.

_Eu... Eu vim aqui durante a semana toda com... A... Sua ir... A Alice. _Disse Juliana assustada com a própria mutilação que fez a frase.

Anne segurava o riso na frente das duas, e no rosto usava uma máscara extremamente séria, mas que Alice já era capaz de ver através com sua visão raio-x de super-irmã. Como daquela vez que o peixinho dourado apareceu morto no aquário na casa dos DeVille e Anne ainda chorava e abraçava a irmã mais velha, que podia sentir ainda nas mãos da caçula o cheiro de peixe.

_Anne? A Juliana esteve aqui a semana toda te visitando, ela vem há muito tempo tentando te pedir desculpas, e está disposta a falar a seu favor para a imprensa. _Disse Alice, com compaixão na voz e olhando de Anne para Juliana que olhava para uma mosca invisível voando pelo quarto.

_Desculpas? Pra quê? Você devia ter evitado essa situação Lice, a Ju... Quer dizer, a Juliana, tá morrendo de vergonha, olha aí. _Disse Anne que agora voltava a se vestir, calçando os sapatos de boneca.

Juliana agora olhava para porta de saída.

_Anne deixa de ser chata, depois do que vocês duas passaram nas mãos daquele safado, vocês tem mais coisas em comum do que antes. _Disse Alice, antes que Juliana atravessasse a parede.

_Lice, a única coisa que a gente tinha em comum era o Humberto, agora eu sou a assassina dele e mãe do filho dele, e ela só é a ex dele. _Disse Anne, corajosa.

_Mas ele não morreu. _Disse Juliana, levando a mão à boca depois de assustar com o som extremamente alto da sua voz que ecoou pelo quarto vazio.

_Como assim? _Anne agora segurando o riso e olhando para Alice esperando uma resposta certa.

Alice olhou para Juliana reprimindo a garota com o olhar. Juliana estava com vontade de sair correndo, mas mesmo assim não o fez.

_É Anne, ele... Não morreu. _Alice disse com os olhos fechados sabendo da reação da irmã. E mais assustada com o que Juliana acharia.

Anne continuou parada ao pé da cama olhando para Alice e nem colocava os olhos em Juliana que agora voltava a virar para ela lentamente, curiosa com a reação da ex-amiga.

Anne estava de volta ao apartamento de Humberto, abraçada com ele, envolta no sangue dos dois que se misturava em torno do seu corpo. Humberto ainda respirava lentamente e a força do sangue que fluía do pescoço dele fazia cócegas no pescoço dela. Quando Anne se pôs de pé com muito esforço para tirar o namorado de cima de seu corpo, ela ficou parada por um tempo admirando como era bonito ver Humberto ali. A cor azul nos olhos dele se destacava tanto com o vermelho do resto do cômodo. E quando aquilo começou a ficar sem graça, o azul do olho dele foi ficando cinza, o vermelho vivo do sangue se tornou vinho e Anne se deu conta do que tinha feito. Sua mente começou a agir pela primeira vez no lugar do coração. Que Homem horroroso estava ali agora. Um grande cafajeste, usando ela como objeto pra suas insanas aventuras amorosas com garotas mais novas. A sarjeta parecia tão convidativa naquele momento, era mais limpa do aquele lugar. E ela não estava levando em consideração a bagunça da festinha particular de Humberto com a vadia de aluguel. Ela olhava pro sangue assustada, como uma pessoa só pode ser capaz de expelir tanto sangue sujo daquele jeito? Talvez o trabalho intenso que o sangue vazia frequentemente para bombear o seu pênis a toda hora, para suas constantes experiências sexuais, e que seja lembrado, cada uma delas com uma diferente parceira inocente. Ou paga. Tudo isso tenha feito o sangue veloz e furioso, estando sempre na correria. Como um homem pode ser tão baixo a ponto de fazer o que fez com ela, Anne Marrie DeVille? Sem pensar, sem sentir compaixão, pena, ou saudade. Anne saiu do apartamento com dificuldades devido ao seu ferimento, apanhando um casaco no cabide perto a porta. Deixando pra trás o seu grande e único amor, mas que não podia amar. Não por ela, mas o que os outros iriam dizer dela. Matá-lo era uma forma de impedir seu instinto de amar de amar. Era Anne pela primeira vez sendo racional na vida.

O coração dela voltou a funcionar naquele momento, a bater de novo por Humberto, um sopro subiu pela sua espinha e os músculos do rosto começaram a se contorcer e antes mesmo que ela pudesse controlar, seu cérebro obrigá-la a fechar a boca e Alice percebesse o que viria depois de uma declaração dessas, Anne já estava mostrando todos os dentes em um largo sorriso, os olhos também brilhavam feito esmeraldas em água corrente com a luz do sol as atravessando.

Alice ficou tão assustada com aquilo, não por ela, mas com medo da reação de Juliana na frente do sorriso de Anne, que num ato de total impulso se aproximou da irmã e a segurou no braço deixando o rosto das duas próximos demais para de distinguir de quem era a cara.

_Anne não haja como se nada tivesse acontecido, você não queria ter matado ele né. E pára de rir. _Sussurrou Alice no ouvido de Anne, que na mesma hora retomou os sentidos e tirou o sorriso do rosto.

Queria Anne que Juliana não estivesse ali naquele momento, ela a olhava abismada. Alice a soltou logo que percebeu que havia perdido a compostura, e sua habitual meiguice.

_Lice? Você queria que eu o matasse? Seria pior pra mim não é? Eu não fico feliz por ele, lógico que não. _Mentiu Anne, mas continuou: _É por mim. Eu não queria ser lembrada como uma assassina, não mesmo. Ele não merecia morrer mesmo, pelo menos agora ele está sofrendo no hospital. Espero. Eu vi ele lá caído, esguichando sangue. Ele tá sofrendo, igual eu e a J...

Juliana estava com lágrimas nos olhos que escorreram lentamente pelo seu rosto encostou em sua boca extremamente fina, mais parecia uma linha no papel branco. E fez menção de falar, quando Alice interrompeu:

_Anne você não pode contar como você me contou, você está me entendendo? Eles não entenderiam e talvez te internassem. _Disse Alice, com o tom da voz igual ao de uma criança dando uma bronca na própria boneca. _Ela veio aqui pra te ajudar. Se ela contar a imprensa o que aconteceu com ela e o Humberto, a situação pro lado dele vai piorar. E talvez as outras que já passaram pelas mãos dele e que sofreram danos muito maiores do que ele, ou vocês, sabe lá, quem sabe elas não têm coragem de falar também. Ou pais, ou mães. O que interessa é que eles lá fora já te colocaram na cruz, e você tem que descer viu, se não você vai ser apedrejada na rua por aqueles fanáticos oportunistas, que aproveitam de uma situação delicada dessas pra vender jornal, se bem que a culpa não é deles eu sei disso, o pior é quem quer ler um tipo de notícias vazia dessas.

_Mas e a minha versão, só eu que estava lá, ninguém mais. _Anne falava com a voz superior se achando a maior das criaturas, pelo menos da Juliana.

_Mas é pra isso que ela tá aqui meo. Pra te ajudar, se ela falar quem o Humberto era pra imprensa, eles vão acreditar em você. _Disse Alice.

_Ela não vai falar nada não, ela ainda tem teto pra morar e vai querer continuar nele, mas se o pai dela souber, ela perde tudo. _Disse Anne abaixada sobre a perna enquanto puxava os sapatinhos de boneca nos pezinhos delicados e rosados. Mesmo porque não teria coragem de dizer metade do que disse se olhasse para o rosto de Juliana.

_Ela... _Começou Alice.

_Eu já saí de casa. _Disse Juliana com a voz embargada.

O silêncio que seguiu no quarto foi torturante, Anne queria continuar abaixada, mas ficaria estranho fingir procurar algum anel. Então se pos de pé lentamente.

_Quando saiu nos jornais que você tinha machucado ele, eu juro que fiquei feliz. Ele não merece pena de ninguém e é só isso que ele está ganhando de todas as pessoas que estão te culpando. Eu sei que você, se fez o que fez, foi porque ele mereceu. Ele fez o mesmo comigo, quando me deu aquele remédio e eu não abortei o bebê, ele me jogou no chão e me obrigou a tomar um chá lá. Doeu muito perder um neném, na hora somente a dor física mesmo, mas quando cheguei em casa, percebi a furada que eu tinha entrado e te agradeci muito por estar namorando com ele, por tirar ele da minha vida de vez. Mas quando li no jornal que ele estava nas últimas graças a você, eu sabia o que realmente tinha acontecido, ainda mais que você está grávida, eu sabia. _Juliana passava a mão no rosto pra secar as lágrimas e também para não morrer afogada no próprio choro. E tomando fôlego, inspirando e expirando fortemente, ela continuou: _Quando sua irmã me pediu pra falar para imprensa o que tinha acontecido comigo, eu não podia fugir, não mesmo, não mais. Escondi até do meu pai o que aconteceu, o que não foi fácil, mas resolvi contar e não deu outra também fui pra rua viu! Pelo menos agora você tem companhia pra dividir o papelão. _Sorriu forçadamente. _Não é por você, eu devia isso a mim. Tentar me redimir diante do que fiz por causa de um homem que não merecia nada de ninguém, nada mesmo. O seu neném vai ser muito feliz viu, e se depender de mim eu vou sempre ajudar. Não me entenda mal, mas depois que perdi o meu, eu queria muito ter um, mas o médico disse que somente com um tratamento muito avançado. Então se você quiser a gente pode voltar a ser amigas de novo e dessa vez eu te garanto não vai ter homem nenhum pra nos separar. Heim?

Alice secava as lágrimas no rosto molhado e olhava para Anne que mantinha a mesma expressão desde quando Juliana começou a falar.

Anne viu agora que elas tinham muito em comum, não somente o mesmo ex, mas a perda de muitas coisas, de sonhos, amores, pessoas, família. Totalmente comovida Anne se pôs em volta da amiga, abraçando-a o mais forte que podia. Via além de Alice, mais alguém com quem podia contar. Uma amiga de verdade, como com qualquer outra, mas uma das melhores. Um amor novo surgia naquele momento, um amor novo para Anne. A amizade.

As três continuaram no quarto a conversar sentadas na cama e o sol da manhã invadia o quarto por entre as persianas lançando feixes de luz nos rostos das meninas enquanto Anne contava animada para Juliana o que tinha acontecido há uma semana atrás.

Marcada para dez horas da manhã a alta de Anne Marrie, seria coberta por toda a imprensa que acompanhava o caso da “Jovem Grávida Assassina”. Do outro lado da porta do quarto já era possível ouvir os repórteres e a multidão que se aglomerava a frente do hospital. O circo estava armado e pronto para Anne subir até o alto do picadeiro e se balançar na corda bamba.

Alice era justa primeiramente, começou a discutir quando a irmã disse que recusaria o advogado. Ela achava a proposta da irmã um tanto quanto insana. Estar em uma situação dessas sem um representante da lei ao seu lado, para orientar e livrar seu pescoço dos canibais dos bons costumes.

Alice tomou dianteira ao saírem do quarto empunhando a mala da irmã na mão, Ju e Anne vinham logo atrás lado a lado. Os repórteres se batiam do lado de fora, alguns se arriscavam em cima dos carros e até dos postes pra pegar a melhor foto do rosto de Anne Marrie e não esperavam ver um sorriso nele. Mas eles não contavam com a genialidade de Alice maravilhosa, dias antes havia feito um acordo com uma das enfermeiras que as deixariam sair pela entrada dos fundos. Estamos falando de dinheiro, muito dinheiro, a imprensa também era provida dessas idéias para conseguirem o que quisessem, mas ela não tinha um pai rico como o de Alice e nem era dona da clínica. Do lado contrário a entrada da clínica as três se dispuseram a andar por corredores largos e limpos, delicadamente decorado com as mais modernas novidades da época. Com o táxi a espera das três a porta lateral da clínica se abriu lentamente e as três escorregaram para dentro do carro, logo passando pela rua de trás do prédio para não provocar uma correria desesperada atrás do veículo em que elas estavam.

Dia 29 de março de 1987, Anne estava sentada no teto da sua nova casa, onde moravam ela e Juliana. Um presente da mãe de Juliana. Simples e modesta, lembrava uma casa de boneca, era rosa e azul, com uma arquitetura diferente de todas as casas que Anne já ouvira falar na vida e provavelmente qualquer um nunca tenha visto um castelo tão pequeno que ao entrar era instintivo se abaixar à cabeça com medo de encostar a cabeça no teto. Pura ilusão. Era até espaçosa pra duas. Sentada no teto como costumava fazer todos os dias depois do almoço para se aproximar das árvores e sentir o aroma do verde, as folhas encostarem-se ao seu rosto e para os ouvidos o som perfeito do canto dos pássaros. Era uma vida boa, nada com que ela sonhara um dia, mais especialmente arranjada de última hora e estava ótima. Passados exatos um mês depois que saiu do hospital, era natural que uma gravidez de três meses começasse a esticar a pele do abdômen perfeito de Anne, a barriguinha já estava aparecendo, às vezes ela até achava que sentia o neném chutar, mas nada que uma boa conversa com ela mesma a tirasse a ilusão.

A imprensa já havia esquecido Anne, tiraram algumas fotos que estamparam os jornais por algum tempo, sempre quando entrevistavam a família de Humberto e quando o próprio Humberto deu sua versão da história. A família dele ainda não tinha tomada nenhuma providência judicial, sabiam da fama do herdeiro galinha e também sabiam que Anne estava com Juliana que também iria contra ele caso alguém falasse alguma coisa. A vida pra ele continuou a mesma. Recuperado dos ferimentos, mas ainda de repouso em casa, outra casa, ele marcou o noivado com Poliana. E todos tentavam se concentrar nos preparativos do casamento para abafar o escândalo recente.

Estar acordada para Anne naquele último mês era o melhor que lhe podia acontecer, as noites eram longas e mal dormidas. Se dormia, tinha péssimos pesadelos com Humberto, e se acordava no meio da noite sempre ouvia algo fora da janela e jurava que também era ele. Vivendo sobre o medo constante da possível vingança de Humberto, Anne ajudava Juliana com as coisas da casa, como tarefas domésticas, compras e decoração. Soraia , mãe de Juliana, e Alice as visitavam com freqüência, sempre lhes dando dinheiro e assistência. Mas as duas estavam se dando muito bem, Juliana na verdade sempre foi uma ótima amiga, muito prestativa e cuidadosa com Anne, mas antes Anne nem ligava e nem chegava a notar nenhum esforço, mas agora, ela não só reparava na dedicação da amiga a amizade das duas, como sempre se dispunha a ajudar no que Juliana quisesse. A vida não podia ser mais perfeita, tirando a noite, somente o dia. Então fica assim: Os dias não podiam ser mais perfeitos. Até aquele dia, o dia 29 de março de 1987.

Ainda sentada no alto da casa se segurando nas telhas que ainda se mantinham firmes apesar do aparente tempo em que ali estavam, Anne estava com os olhos fechados, usando os outros sentidos para se aproveitar aquele simples pedacinho de lugar, que nem era tão belo assim, tirando a casa é claro. Mesmo com as pálpebras baixas, a luz do dia foi indo embora, saindo devagar por entre as nuvens, sugada pelos ventos que a arrastava para outro lugar. Estranhando o fato Anne levanta os olhos em busca de esclarecimento. Mas nada estava claro mais como minutos atrás, um grande crepúsculo sombrio cobria cada centímetro daquele lugar incomum. O telhado ainda quente se encontrava debaixo daquela garota assustada, que agora via Humberto em todos os lugares, se escondendo atrás da árvore do jardim, do carro que estava na rua, agachado na grama da casa em frente, enfim em todos os lugares. Juliana apareceu embaixo de Anne caminhando para o meio da rua para observar o que estava acontecendo. Anne podia ver bem melhor dali, que era mais alto. Um eclipse tomava conta dos céus, cobrindo o sol por inteiro estava uma bola negra, soltando pelas bordas flechas douradas que iluminavam pouco lá em baixo. Depois de alguns minutos Anne desceu para se juntar a amiga no jardim. Hipnotizadas pela imagem celestial as duas se manteram ali como muitos vizinhos que também se encontravam na rua para ver o fenômeno. Quando baixou o olhar por um minuto quando realmente sentiu o bebê chutar, Anne vê se aproximando devagar, a pessoa que ela jamais imaginou encontrar de novo, não em vida.

Otton caminhava de cabeça baixa na direção das garotas que agora o olhavam boquiabertas. Juliana olhava de um para o outro e não podia acreditar na visita de Anne Marrie.

domingo, 11 de maio de 2008

Capítulo 2: O Abraço de Anne Marrie

Alice pegou o telefone e discou o número de casa enquanto olhava sua irmã correr para a janela e abrir as cortinas, seu grande sorriso ainda perturbava Alice, com os olhos fechados Anne sentia a brisa leve no rosto e seus cabelos dançavam com o vento:

_Casa dos Deville. _Disse Joana no outro lado do telefone.

_Sou eu Joaninha, Alice. _Disse Alice enquanto fazia sinal para Anne sair da janela. _Cadê o papai?

_Olha menina ele não apareceu aqui não, a chave do carro dele tá lá no quarto no lugar de sempre e ele não tá lá também não. _Disse Joana.

_Joana liga lá pra clínica pra mim, vê se ele...

Do outro lado da linha o som da porta se abrindo foi abafado com a voz de Joaninha:

_Alice, ele acabou de chegar aqui com um homem, parece o chaveiro. _Disse Joana baixinho.

_Quem é Joana? _Disse Otton.

Alice escutou a pergunta do pai pelo telefone.

_Diga que foi engano Joana daqui a pouco eu chego aí. _Disse Alice baixinho, como se o pai a pudesse escutar.

_O senhor me desculpe, mas não mora nenhum Gilberto aqui não viu. _Disse Joana com a voz exageradamente aumentada pouco antes de desligar o telefone.

Alice permaneceu com o telefone na orelha por alguns segundos e lentamente colocou o telefone no gancho. Olhou para a irmã e voltou com o telefone pro ouvido.

_Você quer comer alguma coisa Anne? _Perguntou Alice para Anne que ainda estava na janela agora olhando atentamente a vista.

Mas não obteve resposta.

Anne? _Disse Alice aumentando o tom da voz, a alegria de Anne estava a perturbando.

Anne olhou assustada.

_O quê? _Disse Anne automaticamente.

_Vai querer alguma coisa lá de baixo? _Perguntou a irmã.

_Não, tô sem fome. _Respondeu calmamente.

Anne voltou a encarar a vista e agora com as mãos sobre o cabelo continuou sua reverência à paisagem.

_Hotel Royal. Serviço de quarto. Boa tarde. _Disse a recepcionista.

_Eh... Você poderia trazer um sanduíche natural e um suco de frutas, por favor. _Disse Alice enquanto olhava para a irmã distraída na janela, botou a mão sobre o telefone e a boca e continuou. _E eu gostaria que me fosse avisado imediatamente caso minha irmã saísse do hotel, eu já estou descendo, é porque estou deixando minha irmã hospedada aqui e ela ainda é menor, caso ela venha a sair do hotel eu gostaria de ser avisada imediatamente. Meu nome é Alice Marrie, ao passar pela recepção deixarei meu telefone de contato, tá ok?

_Claro Senhorita! É só deixar seu telefone conosco que a gente lhe avisara a qualquer imprevisto ocorrido. _Disse a recepcionista.

_Obrigada. _Agradeceu Alice.

Alice largou o telefone sobre o gancho a fim de chamar a atenção da irmã na janela.

Anne olhou para Alice que a encarava, ela então fechou as cortinas e sentou na cama encarando o rosto da irmã, esperando o sermão.

Alice passou a mão sobre o rosto e encarou a irmã de volta:

_Anne, eu não tô entendendo. Seria demais falar isso, mas parece que você tá adorando isso tudo. Parece que foi armado. _Disse Alice calmamente, como costumava falar. _E eu te conheço muito bem Anne sei que você seria capaz disso, já vez tantas coisas piores.

_Do que você tá falando Lice? _Disse Anne com um sorriso de lado.

_Para de rir menina, vê se cresce, já tá na hora sabia? _Disse Alice. _Quando essa estória toda começou eu ti avisei, eu disse pra você parar, o Humberto não vai aceitar esse filho.

_Você não conhece o Humberto, nem sabe como ele é amoroso. _Disse Anne.

_Ah conheço sim, eu conheço muitos Humbertos, ele tá na faculdade já e não vai largar tudo, abrir mão da carreira dele pra virar pai de família, mas não vai mesmo. Anne acorda, deixa só eu te fazer uma pergunta. Tem muito tempo que você foi pra cama com ele?

_Tem, mais ou menos uns meses, uns... dois meses, sei lá. _Disse Anne.

_Então você já deve estar com uns dois meses de gravidez. Há quanto tempo você desconfia? _Perguntou Alice.

_Dois meses, depois da nossa primeira vez. _Disse Anne tranquilamente.

_Da sua primeira vez né. Anne esse cara pega essas menininhas tudo por aí, ele não vez a mesma coisa com a Juliana? _Disse Alice.

_Mas ele largou ela pra ficar comigo. _Disse Anne orgulhosa.

_Não, não foi por sua causa não, foi por que ela ficou grávida igual você agora. _Disse Alice.

_Mas ele já tava saindo comigo quando a Ju ficou grávida. _Disse Anne em defesa de Humberto.

_Disso eu sei. Mas você acha que ela sabia disso, que o namorado dela estava saindo com sua melhor amiga. _Disse Alice. _Você tinha que ter me falado Anne, quando começou a desconfiar da gravidez, sei lá a gente pensava eu algo pra fazer antes, na pílula do dia seguinte, sei lá, agora é tarde demais.

_Tarde nada, a Ju tentou tirar e...

_E você sabe o que aconteceu com ela né? Quase morreu. _Disse Alice. _Chegou tendo hemorragia lá na clínica do papai.

_Eu sei, ela ficou um tempo sem ir à aula. Eu lembro. _Disse Anne.

_Era pra você estar do lado dela nessa hora e não com o namorado dela. _Disse Alice.

_Mas o pai dela não colocou ela pra fora de casa, igual o meu. _Disse Anne.

_É, mas eu acho que o pai dela nem sabe que ela tava grávida. A mãe dela pagou tudo e não contou nada pra ele, se não acho que ela estaria na rua igual a você. _Disse Alice.

_Ainda bem que ela não saiu de casa, se não eu tenho certeza que ela ia atrás do Humberto pra morar com ele e eu ia perder o namorado. _Disse Anne.

_Anne que horror, você só consegue pensar em você. _Disse Alice enquanto se aproximava da irmã na cama. _E você acha que ela não tentou morar com o safado não, se bobear foi ele que deu o remédio pro aborto pra ela e a menina quase morreu. Anne ele não aceitou a criança da Juliana e não vai aceitar a sua e nem você.

_Ele não gostava dela Lice, ele me falava. _Disse Anne contente. _Mas de mim ele gosta, é de mim que ele quer ter um filho, é por isso que ele pediu pra Ju tirar.

_Eu não vou mais tentar te convencer de nada, só não quero que você vá falar com ele sozinha ouviu. Me espera e talvez amanhã, eu consigo dar uma fugidinha lá da faculdade aí eu vou com você, mas nem fique felizinha se você pensa que vai morar com ele. Nem pergunte pra ele isso, a gente só vai contar pra ele e pronto. Somos só eu e você agora, o papai mais dia ou menos dia vai voltar atrás e aí a gente vai cuidar da criança, só nós e acabou. Entendeu Anne?

Anne balançou a cabeça em sinal positivo, mas por dentro Anne tinha seus próprios planos para o futuro.

Alice continuou o sermão, mas Anne nem prestava atenção, sua imaginação viajava por vários lugares, seus planos, sua vida dali em diante como seria linda e feliz, ela ia ter sua própria família, seu próprio filho, sua casa. Ela seria feliz a seu modo com seu grande amor, com seus dois amores, isso é claro se Humberto quisesse ser pai. Se não ela estava preparada para fazer qualquer coisa para continuar com seu amor. Agora ela entendeu o que o velho Silva disse na farmácia mais cedo.

O lanche chegou no quarto e Alice foi embora logo depois de ter certeza que Anne havia comido tudo. O que não foi difícil, ela estava sem almoço e não havia comido nada desde o café da manhã e já passava das 4 da tarde.

Anne foi até a mala e cuidadosamente retirou suas melhores peças de roupa e na frente do espelho colocou uma por uma sobre o corpo, ainda era cedo para ir encontrar Humberto, ele chegava em casa por volta das onze da noite. Ela passou a tarde toda se aprontando e se arrumando para ver Humberto, o novo papai.

Por volta das 8 da noite Anne havia acabado de se arrumar. Com um vestido amarelo até os joelhos, um sapatinho por cima das meias brancas até a canela, os cabelos soltos até o meio das costas, a maquiagem leve sobre os olhos, as bochecha rosadas se destacavam sobre a pele branca, sobre a boca um leve brilho rosado. E assim como uma boneca de porcelana Anne estava sentada sobre a cama e esperando pelo resto da noite, em uma das mãos apertava o dinheiro que guardava da última mesada, e ao seu lado a mala antiga que ganhara da mãe estava feita e pronta.

Anne soava nas mãos enquanto descia pelo elevador, molhando o dinheiro apertado na mão. A mala ficou no quarto esperando sua volta. Ao sair do hotel, alguns homens a olhavam tamanha era sua beleza e vaidade. Com as mãos delicadas acenou para um táxi na porta do Hotel Royal e delicadamente entrou no carro que seguiu pela grande cidade de São Paulo. Anne admirava as luzes, nunca havia saído a essa hora sozinha, a grandiosidade dos prédios, as pessoas andando na calçada, os casais namorando nas praças, a lua brilhando no céu, que mais parecia um manto de veludo azul escuro adornado com pequenos diamantes. Naquele momento tudo para Anne estava perfeito, tudo era poesia, o ar tinha cheiro de rosas. Ela às 11 horas da noite andando pela cidade, sem ninguém para cobrar nada dela, sem ter que inventar mentiras depois, indo de encontro com seu amado, lhe contar uma grande coisa, ainda pequena, mas grande na responsabilidade. “Responsabilidade” uma palavra que Anne adorava dizer, e pensar que ela possuía, lhe chegava à mente que ela já era adulta, a liberdade, também lhe dava essa ilusão. E o carro cortava a cidade lentamente e Anne no banco de trás com os olhos grudados no vidro imaginando um mundo só dela.

Já na portaria do prédio de Humberto, Anne aguardava com as mãos a frente do corpo, o namorado chegar da universidade. O sorriso estampado no rosto desapareceu quando já se passava da meia noite e Humberto ainda não havia chegado. Sentada no meio fio com os pés na sarjeta ela tentava imaginar milhões de coisas, milhões de razões para o atraso do seu amado. Prova, trabalho, amigos, Juliana, Amanda, Flávia, Sandra, Roberta. O sorriso agora dava lugar ao desespero, Anne naquele momento estava lembrando das palavras de sua irmã, que por mais que fossem verdadeiras, ela mesma tentava não acreditar. Humberto não havia namorado só ela e sua ex-amiga Juliana, Anne sabia muito bem, que mais da metade do colégio havia saído com ele, fora as garotas da faculdade que ela nem tinha conhecimento, mas sabia muito bem que uma Poliana da mesma sala que ele, foram amigos de infância, e tinha sido noiva dele há um ano atrás.

Na cabeça dela o futuro começou a ficar imprevisível novamente, a cada minuto na frente daquele prédio um pedacinho do seu sonho de família se quebrava.

A chuva começou a cair devagar, e Anne viajando em suas idéias, só percebeu quando uma gota caiu sobre seu rosto delicado. Tentando se proteger da chuva Anne correu para baixo de uma árvore. O porteiro do prédio de Humberto, observando a situação daquela bela menina vestida de amarelo, convidou Anne para entrar na portaria, para evitar que ela se molhasse mais.

Anne agradeceu o porteiro e correu para a portaria.

Waldo o porteiro, ficou fazendo companhia para a pequena menina, sem palavras ele admirava o corpo de Anne sob o vestido amarelo molhado. Ela sorria para ele naturalmente tentando rir da situação, mas nem reparava que Waldo tinha más intenções e maus pensamentos enquanto fitava o corpo de mulher dela e a calcinha colorida que se revelava de baixo do vestido que agora estava totalmente transparente. Passando as mãos sobre os cabelos a fim de secá-los mais rápido antes que Humberto chegasse e a visse daquele jeito, ela sentia as palavras da irmã batendo em sua cabeça, colocando o orgulho dela dentro de uma mala junto com seus sonhos e jogando no rio mais profundo que existe. Enquanto Waldo não tirava os olhos de Anne Marrie, que desconfiada colocou os braços sobre o peito tentando esconder os seios, que ela agora havia percebido que estavam à mostra:

_Oh moço? _Começou Anne. _O senhor sabe que horas o Humberto Fonseca vai chegar?

Waldo percebeu que estava dando na cara sua tara pelo corpo de Anne e então como despertando de um sonho, no susto disse:

_Oi. O que a senhorita disse?

_Eu perguntei, se o senhor sabe que horas que o Humberto do 602 vai chegar? _Disse Anne envergonhada, e tentando falar mais com mais força na voz para ver se o porteiro desconfiava e parava de olhar pra ela.

_Mas ele não saiu não senhora. _Disse Waldo olhando para o teto, torcendo o olho para não olhar para o corpo de Anne. _Chegou aí de tarde e não saiu mais.

_Obrigada. _Disse Anne, enquanto se virou de costa e seguiu em direção ao hall do prédio para pegar o elevador até o sexto andar.

Anne sabia que naquele momento o porteiro estava olhando para a sua bunda, então andou o mais rápido que pode para chegar até o elevador e assim evitar que Waldo olhasse para seu corpo de novo. Sua pressa era tanta que nem ouviu quando o porteiro disse que Humberto chegou acompanhado.

No elevador Anne se ajeitava, tentando não parecer feia ou desarrumada. O coração dela batia forte quando bateu na porta do apartamento de Humberto. Esperou um pouco até que voltou a bater. Quem tava agora no fundo de um rio era Alice e suas palavras, mas Anne já nem lembrava mais dos conselhos da irmã, ou apenas tentava esquecer, afinal ela também sabia daquilo tudo, mais era amor demais para levar em consideração alguns deslizes de Humberto do passado.

Humberto atendeu a porta vestindo uma bermuda e a uma blusa social aberta, e logo saiu fechando a porta do apartamento.

_O quê você tá fazendo aqui Anne? _Perguntou Humberto, aparentemente bêbado.

_Eu vim aqui te ver. _Disse Anne. _Você bebeu Beto? Você não bebe.

_Não é que... Eu tava aqui eh.... _Disse Humberto, tentando se explicar para Anne. _Mas você tem que ir embora Anne, seu pai. Já tá tarde.

_Meu pai me expulsou de casa. _Disse Anne de cabeça baixa.

_O quê. Por quê? _Disse Humberto.

_Você não vai me convidar pra entrar? _Perguntou Anne enquanto tentava olhar pela fresta da porta pra dentro do apartamento de Humberto.

Mas antes mesmo que ele pudesse responder Anne entrou no apartamento enquanto ele se equilibrava na porta, segurando a pelo lado.

_Vai embora amor! _Disse Humberto enquanto fechava a porta. _Anninha, seu pai deve estar te procurando heim, vai pra casa, amanhã eu te pego no colégio.

Anne entrou pelo apartamento pulando as garrafas de cerveja e as guimbas de cigarro espalhadas no chão. A fumaça de maconha ainda estava no ar, dava pra perceber pelo cheiro.

_Você fuma Beto? _Perguntou Anne, esperando ouvir que eram de outra pessoa então continuou. _Você estava dando uma festa?

_Espera aí Anne, quem deve fazer as perguntas aqui sou eu. _Disse Humberto caminhando até o sofá. _O que você está fazendo na minha casa à uma hora dessa menina, você tá doida. Vai embora gata, cai fora, VAI.

Anne entendia a ignorância de Humberto, afinal já passava da meia noite e não era hora de uma menina estar na casa de um homem solteiro. Então resolveu parar com as perguntas e dizer logo o que estava ali pra dizer desde quando saiu daquele hotel.

_Eu sei que é tarde Beto, mas eu preciso te dizer uma coisa muito importante. _Começou Anne. _Eu vou direto ao assunto porque eu não gosto de enrolar, eh... Já tinha dois meses que eu estava desconfiada, então eu fui hoje na farmácia e comprei um teste.

_Desconfiada do quê? Que teste menina? _Perguntou Humberto do sofá, enquanto pegava uma garrafa do chão e virava na boca.

_Presta atenção Beto! _Disse Anne irritada com a falta de atenção de Humberto, e pelo fato de ele estar bebendo, quando sempre disse que não bebia nada. _HUMBERTO! _Gritou Anne. _Pára de beber.

_Fala baixo menina. _Disse Humberto largando a garrafa depois de ter tomado o resto da cerveja.

_E não me chama de menina, Anne viu, meu nome é Anne! _Disse Anne irritada.

_Fala baixo, se não você vai acordar a gata aí. _Disse Humberto.

_Que gata Beto? _Disse Anne, esperando ouvir que era um felino domesticado dado de presente pela avô dele. _Você está bêbado, amanhã a gente conversa.

Anne achou melhor ir embora, conversar um assunto tão serio quanto aquele com uma pessoa bêbada não ia dar certo, talvez ele nem lembrasse de nada no dia seguinte.

Anne já estava abrindo a porta quando pelo espelho viu uma mulher seminua sair provavelmente do quarto de Humberto.

Se na cabeça de Anne ainda sobrara alguma coisa do tão sonhado futuro de Anne Marrie ele acabava de ficar totalmente em pedacinhos dentro da mala no fundo do rio.

Ela então soltou a porta e voltou pra dentro do apartamento.

_Quem é essa menina aí Betão? _Perguntou a mulher enquanto se sentava ao lado de Humberto no sofá.

_Quem sou eu? _Disse Anne sarcasticamente. _Fala pra ela “Betão”. Conta aí, ou melhor, me diz você o que está acontecendo aqui.

_Vai pro inferno as duas. _Disse Humberto enquanto tentou se levantar se equilibrando sobre as pernas. _Você pode ir embora, viu minha filha, tava bom pra caralho o serviço. Mas vê se cobra menos da próxima vez. Pode pegar suas coisas eu já te paguei, vai.

Anne não acreditava no que estava vendo, ficou chocada enquanto via aquela mulher se levantar meio zonza e catar suas pequenas peças de roupa pela sala, que somente agora Anne reparou de que estavam ali.

_Humberto você pode me dizer alguma coisa, seu safado, ela é o que eu estou pensando? _Disse Anne quando começou a chorar. _É não é? Eu já sei. Burra fui eu que caí na sua lábia.

_Anne vai embora menina, vai se foder pra lá. Tá vendo aqui oh, eu posso ter a mulher que eu quiser, na hora que eu quiser. Eu posso pagar. _Disse Humberto, enquanto apertava a bunda da prostituta que estava completamente drogada como Humberto. _Volta pro seu pai, pra suas bonecas, vai estudar vai! Amanhã deve ter prova heim, se não tirar nota boa não tem mesada esse mês.

_Eu to grávida oh imbecil. _Disse Anne segundos antes de ter se arrependido de abrir a boca. _E não recebi nada por isso.

Sem se controlar Anne depois de dizer aquilo por impulso e pra calar a boca de Humberto, colocou a mão sobre a boca. Mas depois pensou melhor e ao invés de esconder isso dele ela estava disposta a gritar para o mundo inteiro ouvir, para que todos soubessem o que o cafajeste do Humberto fez com ela.

_É isso mesmo, ficou chocado, cadê o machão agora? _Disse Anne com lágrimas nos olhos. _Você tem razão a menininha tem que estudar tirar notas boas, e não vai conseguir cuidar do neném sozinha ouviu. Ajoelhou vai ter que rezar. Não pagou antes mas vai ter que pagar agora, seu panaca!

Humberto ficou parado olhando pra ela e jogou a prostituta no chão na hora.

_Se ferrou! _Gargalhou a prostituta.

_Puta que pariu, CALA A BOCA! _Gritou Humberto, enquanto esbofeteou a cara da prostituta.

_Eu vou embora daqui. _Disse Anne andando em direção a porta.

Humberto pulou sobre o corpo da meretriz no chão e correu atrás de Anne pelo corredor do prédio. Antes que ela chegasse ao elevador ele a segurou pelo braço e a levou de volta ao apartamento.

_ME SOLTA! _Gritou Anne pelo corredor. _SOCORRO!

_Calma Anne, CALMA PORRA!_Gritou Humberto enquanto fechava a porta do apartamento e segurava Anne pelos braços. _Vamos conversar com calma.

_É isso que eu vim fazer aqui Humberto. _Disse Anne.

_Então. _Disse Humberto.

_ANTES HUMBERTO, Antes. Agora eu quero ir embora. ME SOLTA! _Gritou Anne.

_Fala aí, quanto tempo você tá sabendo? _Disse Humberto, segurando Anne forte nos braços.

_Você tá me machucando Humberto, me solta. _Chorava Anne, enquanto tentava se livrar dos braços de Humberto.

_Tá beleza. Mas promete que nós vamos conversar. _Disse Humberto, preocupado com o que poderia acontecer na sua vida dali pra frente.

_Eu não quero conversar, vai dormir Humberto, ou fazer sei lá o quê com essa daí. _Disse Anne chorando para Humberto enquanto olhava a prostituta que se vestia no meio da sala. _Eu quero ir embora, acabou.

_Anne deixa de ser criança, vamos conversar. _Disse Humberto irritado, dando um soco na porta atrás de Anne. _Me escuta vamos sentar ali no sofá.

_Humberto você tá doidão, não vai nem lembrar que eu tive aqui amanhã. _Disse Anne.

_Deixa de ser chata garota senta logo e vamos conversar. _Disse Humberto arrastando Anne até o sofá.

Anne lutava contra Humberto, mas seu corpo frágil não era páreo para a força bruta dele ela só gritava ajuda e socorro, enquanto a prostituta deixava o apartamento calada.

_Senta aí. _Disse Humberto jogando Anne no sofá.

Anne passava a mão sobre o braço machucado por Humberto, que agora andava de um lado para o outro enquanto ela chorava sem parar. Humberto agachou diante de Anne e levantou o rosto dela enxugando as lágrimas dela com a mão.

_Olha só, vai ficar tudo bem. _Disse Humberto. _Amanhã a gente vai até alguma farmácia, eu vou com você aí a gente compra um remedinho, que é só você tomar que está tudo resolvido.

Anne sabia que ele queria se livrar do bebê. Mas ela não iria fazer isso, não agora depois de perceber que Humberto não valia nada, ele não merecia o amor de ninguém, a atenção de ninguém, ele não merecia o amor de nenhuma criatura no mundo. Muito menos no dela, que de paraíso virou deserto em questão de segundos.

_Eu não vou tirar o bebê tá ouvindo. _Disse Anne entre dentes. _Eu vou ficar com ele e sem você. Agora me deixa ir embora.

Anne se levantou num salto e tentou correr para porta, quando Humberto pulou sobre seu corpo e a jogou no chão. O barulho de vidro quebrando foi abafado pelo corpo de Anne, mas Humberto conseguiu ouvir quando a garrafa se quebrou no peito de Anne. Lentamente ele levantou e esperou que Anne levantasse correndo em direção a porta, mas ela permaneceu imóvel. Assustado ele virou o corpo de Anne pra cima e o sangue havia sujado toda a parte de cima do vestido da garota que ainda respirava, mas estava desacordada.

Sentando lentamente ao lado do corpo de Anne, Humberto colocou a mão sobre a cabeça e desesperadamente pensava no que fazer.

_Puta que pariu! fudeu. _Sussurrou Humberto. _O quê que eu fiz? Que merda, que merda!

Anne abriu os olhos devagar e sentiu o peito arder, e lembrando dos últimos momentos, percebeu que ainda estava no apartamento de Humberto e sentiu que ele estava sentado ao seu lado olhando para o chão com as mãos na cabeça. Ao olhar para o lado, Anne viu um pedaço da garrafa quebrada ainda suja com seu sangue. Sem se mexer muito e num ato de total desespero, em que segurava o choro para não chamar a atenção de Humberto que estava ao seu lado, ela pegou lentamente a garrafa quebrada com as mãos e num salto jogou a garrafa em direção a Humberto, que instintivamente colocou o braço na frente do rosto para se proteger. A garrafa fez um corte no braço de Humberto que gritou de dor.

Anne já estava de pé com a mão sobre o peito, de volta a porta de saída do apartamento quando Humberto conseguiu alcançar a moça e a jogar de volta ao centro da sala. Cambaleando ele pulou em cima da moça e mesmo sentindo dor no braço profundamente ferido e sangrando muito ele tentou enforcar Anne, que chorava sem parar e agora se debatia debaixo de Humberto. Novamente Anne pegou a garrafa quebrada ao lado de sua cabeça e sem dó perfurou o pescoço de Humberto com o estilhaço de garrafa. As mãos ao redor do pescoço de Anne foram ficando menos apertadas e com os olhos ainda brilhantes Humberto encarou Anne pela última vez, sem dizer uma palavra apenas aranhando a garganta que naquela hora não conseguia emitir nem mais um som. Ele caiu sobre o corpo dela. Anne virou o rosto para o lado ainda chorando muito e lentamente levantou a mão sobre as costas de Humberto e como um último adeus ao seu amado ela lhe deu um abraço e permaneceu ali, enquanto o sangue dele se misturava ao dela no chão. Anne sentia que os dois ali eram uma só pessoa, queria ficar ali para sempre, abraçada com seu amor, sem se preocupar com nada, sem bebê, sem pai, nem irmã, sem dor, nem choro, queria sentir só aquela sensação gostosa no estômago, aquele friozinho na barriga. Ela queria só amar, sentir o amado pela última vez enquanto seu corpo ainda estava quente, o coração dele ainda batia sobre ela, e aquilo fazia Anne apertar com mais força os braços em volta de Humberto. Os dois ficaram ali por alguns minutos, ela chorava muito e o abraçava cada vez mais forte e o sangue se misturava ao redor dos dois, era quente e vermelho, tinha um cheiro forte, pra ela o cheiro do amor, enquanto Humberto recebia o último abraço de Anne Marrie.

domingo, 4 de maio de 2008

Capítulo 1: O Sorriso de Anne Marrie

Àquela Hora do dia, a farmácia estava realmente vazia, o farmacêutico se preparava para ir almoçar. Anne usava uniforme, o cabelo preso no alto da cabeça e com os livros ainda na mão ela chegou até a farmácia depois de ter certeza que seus colegas da escola estavam naquele momento cada um em suas casas.

Anne se preparou durante a semana toda para tirar a dúvida cruel que a incomodava durante dois meses.

Quando colocou os pés na Pharmácia Silva, o velho Silva deixou o cadeado de lado e foi para o balcão atender sua terceira cliente do dia. Anne tremia as mãos, mas fazia força pra não transparecer, estava preparada para enfrentar o velho.

Silva não era de muito papo, era viúvo e não tinha nenhum filho, a Pharmácia Silva era bem antiga e já não rendia tanto dinheiro assim, mas Silva não tinha muitos gastos, no final do mês dava pra pagar a contas sem aperto.

Anne se aproximou do balcão, depositou seus livros ao lado das pastilhas para a garganta, passou a mão sobre os cabelos e sem olhar para os olhos de Silva ela encarou a prateleira atrás da cabeça dele:

_Eh... O senhor tem alguma coisa pra... Quando a gente... Sabe? Tipo umas dores aqui, na barriga. _Disse Anne sem graça, com a mão sobre a barriga.

_Tenho. _Disse Silva desanimado, cansado de ficar ali o dia inteiro e com fome, muita fome.

_Então eu vou levar.

Ela disse a última frase olhando para o velho farmacêutico, se sentindo mais segura depois da reação dele a sua pergunta. Ela esperou Silva pegar o remédio em uma das prateleiras atrás do balcão e somente fez a pergunta que na verdade se preparou uma semana toda pra dizer quando ele com o remédio nas mãos encarou Anne com os olhos caídos, desanimados e tristes:

_Tá aqui. _Disse Silva esperando que a resposta de Anne para a próxima pergunta fosse não. _Mais alguma coisa?

_Bem... Na verdade não é pra mim... _Começou Anne bem segura quando disse “Bem” e querendo se matar quando disse “mim”.

Ela voltou a encarar a prateleira no fundo da farmácia e sentiu suas bochechas queimarem. Naquele momento ela se sentia insegura e perturbada, diferente do seu normal. E por uma fração de segundos para se acalmar disse a si mesma: “_Esse velho não vai contar nada a ninguém, nem se ele quiser. Ninguém vem aqui mesmo.”

_É que uma amiga minha, ta meio assim... Como eu posso dizer... Eh... Ela esta atrasada. Atrasada com... As regras... Sabe?

_Sei minha filha, sei. _Disse Silva enquanto se virou para procurar o teste.

Anne percebeu certo sarcasmo na resposta do Silva, mas pensou na sua momentânea inocência, que não teria como aquele velho senhor desconfiar das intenções dela, já que ela havia pedido um remédio para cólica antes de lhe pedir o teste de gravidez.

_Talvez não seja nada, né? Eu falei com ela que era bobeira se preocupar com isso. Eu já atrasei algumas vezes, mas quando menos se espera lá vêm as cólicas. _Disse Anne, procurando o porquê de não conseguir controlar o impulso de ficar falando sem parar, transformando a situação constrangedora em uma situação insuportável. _Eh... Eu já atrasei sim. Mas fiquei calma. Na verdade não tinha nem como eu estar... O senhor sabe né? Tipo... Então. Eu nunca... Quero dizer, eu nunca namorei, entendeu? Daquele jeito, sabe? Meu pai nunca deix...

_Eu entendi meu bem. _Interrompeu Silva. _De trinta pessoas que vem aqui, dezesseis são garotas como você. Querendo ajudar a amiga. Vocês dessa idade são muito amigas mesmo. Amanhã já deixarei separado o remédio da sua amiga.

_Que remédio? _Perguntou Anne assustada para Silva, nunca tinha ouvido da boca dele uma frase com mais de cinco palavras.

Silva então olhou para a entrada da farmácia e disse sussurrando.

_É porque como você, as outras meninas vieram no outro dia também. Então eu passei um outro remedinho. Foi minha mãe que me deu a receita. È um pouco caro, a receita é muito secreta, tenho que ganhar alguma coisa, enquanto a sua amiga perde outra. Ou melhor, evita alguns problemas. Um pequeno, bem pequeno problema.

Anne não entendeu o que Silva quis dizer e devagar pegou os seus livros.

_Amanhã a gente conversa de novo. Dependendo aí. Do resultado do teste, tenho certeza que sua amiga vai vir aqui pegar a minha receitinha de família. _Disse Silva., esboçando um sorriso no rosto. Enquanto Anne colocava o teste e o remédio pra cólica na mochila. _Quer dizer, ela não. Você. Que é muito amiga dela não é.

Ela balançou a cabeça automaticamente e saiu andando da Pharmácia Silva bem devagar, para não mostrar o que realmente estava pensando em fazer. Sair dali correndo e não voltar nunca mais. Enquanto saía o velho Silva resmungava alguma coisa que ela não conseguiu ouvir.

Com sua roupinha colegial Anne veio caminhando pela rua olhando para todos os cantos, preocupada se talvez alguém a tivesse visto saindo da farmácia àquela hora. Ela pensava no teste, ela pensava nas coisas que o velho silva falou,no seu pai preocupado em casa com ela que não apareceu para o almoço, no seu namoro escondido com Humberto, na sua primeira vez com Humberto, na cara dele quando soubesse que seria pai, caso o teste desse positivo. Anne pensava em muitas coisas enquanto voltava pra casa.

A família DeVille a primeira vista, era uma família perfeita, sempre usada pelos vizinhos como exemplo de amor e respeito familiar. Mas o que os moradores do edifício de luxo Flor de Julho não sabiam era que por trás da porta de número 1002 moravam um pai que passou por uma infância difícil com os avós na França, uma estudante de medicina forçada pelo pai autoritário a seguir a mesma profissão dele e uma colegial de 17 anos que mantinha um namoro com um homem mais velho que ela cinco anos, chamada Anne Marrie DeVille.

No apartamento decorado pelos próprios DeVille com o passar dos anos, ainda era possível ver nos quadros ou nas fotos espalhadas pela casa que Otton não queria esquecer e nem deixava a as filhas esquecerem de Ellen Marrie, sua esposa que havia falecido quando Anne tinha somente cinco anos. Desde a perda da amada, Otton assumiu a casa e largou os negócios, gerenciando sua clínica de longe. As filhas criadas severamente pelo pai sofriam com o gênio de Otton, mas não se chateavam com cobranças e regras. Alice sempre aceitou tudo de forma passiva, foi levemente forçada a cursar a faculdade de Medicina enquanto seu desejo era uma carreira bem sucedida no jornalismo. Anne fugia um pouco ao gênio da irmã, fazia tudo que queria, mas sempre escondido do pai que não admitiria algumas atitudes da filha que ele nem imagina em seus piores pesadelos.

Otton estava sentado na poltrona, quando Anne entrou pela porta. Ela já esperava que o pai a recebesse com milhares de perguntas então ele começou:

_Onde você estava Marrie? _Disse Otton, chamando a filha pelo sobrenome como costumava fazer com Ellen.

Anne no caminho pensou em dizer a verdade sobre Humberto e o teste, mas não queria ficar com o rosto machucado, a boca estourada, ou com um tiro no meio da testa, não agora, podia prejudicar a saúde do bebê, então resolveu mentir, como sempre:

_Pai, eu tive que fazer um trabalho na casa de uma amiga, a Ju. É porque e pra amanhã, aí nós achamos melhor fazer tudo mais cedo. Só isso.

_Mas Marrie você tinha que ter avisado, telefonado de lá mesmo da casa da Ju. _Continuou Otton, tentando controlar um possível sermão. _Ou então ter trazido ela pra cá.

_Pai, não era só eu e a Ju não, era nosso grupo inteiro. _Disse Anne, disfarçando a voz pra não gaguejar. _A Ju... Mora lá perto... Da, da... Da escola lá. Todo mundo mora mais perto. _Continuou Anne em direção ao quarto. _A professora deu o trabalho hoje não tinha como eu avisar, e a gente fez o exercício tão rápido que até me esqueci de ligar.

Otton olhava a filha desconfiado, afinal eles moravam a poucos quarteirões da escola, mas para evitar discussão ele continuou:

_A Joaninha guardou seu almoço. Tá lá na cozinha, se quiser eu mando ela esquentar pra você.

Anne deu meia volta no corredor correu e beijou a testa do pai:

_Obrigada pai. Mas não se preocupe Senhor Pierre DeVille eu almocei na casa da Ju. E pra onde eu poderia ir, eu não vou fugir não viu.

Joaninha entrou pela sala:

_Oh menina Anne quer que esquente seu almoço? O doutor Otton pedi...

_Não precisa não Joaninha ela disse que já almoç... _Disse Otton.

_Não. _Interrompeu Anne. _Pode fazer pra mim Joana, um sanduíche e um copo de suco?

_Posso sim menina Anne. _Respondeu Joaninha. _Mas a senhorita vai querer com...

_Com tudo Joaninha, com tudo. ­_Gritou Anne enquanto corria para o quarto.

Joana e Otton ficaram parados na sala se encarando:

_Mas ela disse que tinha almoçado já. _Indagou Otton.

_É a idade Doutor. _Disse Joaninha. _Agora eu não sei se eu coloco milho ou não.

_Mas essa história tá estranha Joaninha, me deixa ir lá perguntar pra ela. Vai fazendo o sanduíche lá que eu mesmo pergunto pra ela, mas antes pega lá a agenda de telefones que eu vou ligar pra essa tal de Ju, deve ser a menina dos Lessa.

Otton seguiu em direção aos quartos, enquanto Joana pegava a agenda de telefones no escritório do apartamento.

No caminho Otton passou pelo quarto de Alice, que estava sobre a cama estudando com milhares de livros espalhados sobre o colo.

_Lice? Você conhece uma amiga da sua irmã que chama Ju, deve ser a Juliana Lessa, ou não? _Perguntou Otton quando entrou pelo quarto de Alice pela fresta da porta.

_Olha pai, eu acho que deve ser ela sim, só pode ser ela a não ser que ela conheceu outra Ju no colégio. _Disse Alice calmamente, passando as costas da mão na testa. _Porquê?

_Sua irmã tá andando muito estranha ultimamente filha. Cada dia ela conta uma história diferente, quando chega atrasada em casa, essa é a terceira vez já. _Disse Otton preocupado. _Fora os sumiços que ela dá quando diz que vai sair com essa tal de Ju.

_Pai calma, a Anne e essa Ju são amigas desde pequenininhas, é normal que elas andem juntas. _Começou Alice. _Pra onde elas poderiam ir heim me conta? Pelo tempo de atraso delas não da nem pra sair do bairro.

_A pé né. Porque de carro da sim. Esse Shopping novo que abriu ali é perigoso demais pra ela e pra qualquer um. _Disse Otton. _Essa Juliana já aprontou que eu sei, até aborto ela já fez. Apareceu lá na clínica passando mal, sangrando e tudo. Agora, pergunta pros pais dela e pergunta se eles sabem com quem que ela andava, quem era o pai do menino. Não sabem.

_E o senhor acha que Anne faz o mesmo? _Alice perguntou enquanto seu pai a encarava serio. _Ah pai! A Anne nunca nem falou de menino, namoradinho na escola nem nada disso pra mim. Você fica tão em cima da pobrezinha que nem se ela quisesse ela conseguiria namorar escondido. _Mentiu Alice, que sabia muito bem que Anne já namorava há um tempo com Humberto, ex de Juliana Lessa.

_Eu vou é ligar pra casa dessa menina e mandar ela me dizer se a Anne estava lá mesmo ou não. _Disse Otton decidido, tentando esconder o nervosismo.

Alice arregalou os olhos e sabia que aquilo não ia dar certo.

Juliana Lessa foi melhor amiga de Anne, até quando uma roubou o namorado da outra.

_Não pai pra quê? Amanhã essa Ju, vai ficar tirando sarro da Anne no colégio, falando que o senhor ligou pra casa para saber onde ela tava. _Disse Alice, tentando ajudar a irmã.

Otton ficou ali ao lado da porta parado encarando o chão, pensando bem em qual decisão iria tomar. E decidiu:

_Ah Lice, se sua irmã não tem nada a temer, que mal vai fazer se eu ligar?

Antes mesmo que Alice pudesse impedir o pai, Otton já saiu do quarto desesperado. Mas Alice pensou bem e deixou o pai ir embora, ele descobrindo a verdade sobre o namoro da irmã, resolveria muitos problemas. Ela estava bastante preocupada com o que poderia acontecer com Anne, caso a irmã continuasse a se encontrar com Humberto escondido.

Mal sabia Alice que seus medos estavam prestes a se concretizar, Anne estava naquele momento fazendo o teste de gravidez.

Otton se dirigia a sala para telefonar para Juliana, quando lembrou de perguntar a Anne sobre o sanduíche que Joaninha iria preparar. Ele então deu meia volta e se dirigiu para o quarto de Anne, passando pelo quarto de Alice que agora estava sentada ao pé da cama mexendo na sua pasta.

Na casa dos DeVille fechar a porta era proibido, nenhuma delas tinha chave e o máximo que se podia fazer era encostá-la, e quem encostasse sabia que iria passar por um interrogatório do dono da casa.

Otton abriu a porta encostada e já lhe subiu uma veia na testa, calmamente entrou no quarto e não avistou Anne. Preocupado o pai grita pela filha:

_Marrie?

Otton então ouviu barulho no banheiro.

_Já vou pai! _Gritou Anne do banheiro, arrumando as coisas que havia bagunçado e escondendo o teste no armário.

Otton ficou ainda mais desconfiado, na sua cabeça logo veio à idéia de que sua filha estaria usando drogas.

_Anne Marrie, vem aqui agora menina. Eu tenho umas pergunt...

Otton ficou sem palavras quando percebeu por debaixo do travesseiro uma caixinha, desconfiado correu até a cabeceira da cama e puxou a pequena caixinha azul e rosa, antes mesmo de ler o nome, já sabia o que tinha ali dentro, e também sabia o que Anne estava escondendo no banheiro a porta fechada.

Suas respostas estavam respondidas, suas desconfianças confirmadas, o mundo de Otton ficou sem chão, a sua filhinha querida havia perdido o encanto, a sua filha deixara de ser sua filha.

Atordoado ele correu até a porta do banheiro e tentando não quebrar a porta ele bateu levemente:

_Anne Marrie, saia desse banheiro agora, me entendeu agora.

Anne ficou assustada, mas nem lembrou da caixinha que escondeu no quarto. Preparada para responder ao pai e depois de ter escondido o exame, Anne tenta virar a chave na porta, mas só consegue quando para de tremer um pouco.

Otton empurra a porta e segura no braço de Anne com força, levanta a mão contra seu rosto, mas a empurra pra fora do banheiro:

_Cadê? Onde você colocou Marrie? _Esbravejou Otton, enquanto procurava o teste no lixo.

Anne sabia que ele tinha descoberto, sabia que ele ia achar:

_O quê, pai? O que você quer? _Disse Anne com lágrimas nos olhos.

Otton revirava todo banheiro.

_O quê? Você não tem que fazer perguntas não Anne, sou eu que vou perguntar e espero que dessa vez Você não minta. _Disse Otton enquanto se dirigia a Anne.

_Não sei pai, não sei de nada.

_Não sabe de nada? E o quê que é isso aqui heim Anne? _Disse Otton esfregando a caixinha do teste na cara dela.

_Pára pai. _Gritou Anne.

_Vagabunda, exercício na casa da amiga? Porra nenhuma! Garce! _Gritou Otton enquanto suas lágrimas desciam pelo rosto.

Alice entrou no quarto com a cara assustada.

_O quê que isso pai? Larga ela. _Alice correu em direção aos dois e tentou separá-los.

Otton voltou ao banheiro, abriu o armário em baixo da pia e começou a procurar o teste.

_Onde está Anne? _Gritou Otton.

_Pai pára ela não sabe do qu...

_Cala a boca Alice, cala a boca! _Gritou Otton enquanto tirava as coisas do armário. _Eu quero saber onde você escondeu Anne, fala onde Anne, FALA!

Otton retirou uma caixinha de trás dos produtos para cabelo e tremendo a abriu. Devagar ele retirou de lá de dentro o teste, e nem precisava ler as instruções para saber que o teste tinha dado positivo.

Devagar ele se colocou de pé enquanto Alice consolava Anne que chorava no chão.

Ao passar pelas filhas Otton jogou o teste sobre elas e continuou em direção a porta, quando Joaninha apareceu com o sanduíche e o suco em uma bandeja, com os olhos arregalados ela tentou fingir que não havia ouvido nada:

_Doutor Otton, eu deixei a agenda de telefones na mesinha da sala.

Otton parou ao lado de Joana, se virou para Anne e Alice e com lágrimas nos olhos disse suavemente:

_Alice eu espero que você me responda com sinceridade à pergunta que eu vou fazer. _Disse Otton com a voz embargada. _Você sabia o que ela estava fazendo?

Alice levantou com a irmã do chão e segurava o choro para apoiar Anne, mas sabia das conseqüências da sua resposta caso dissesse que sabia de tudo.

Anne olhava com os olhos molhados para a irmã e como se lesse pensamentos sabia como Alice o que iria acontecer com as duas.

_Alice estou esperando uma resposta. _Disse Otton.

_Oh meu Deus! _Disse Joana baixinho.

Alice não agüentava mais segurar as lágrimas e evitava olhar para Anne.

_DIGA LOGO ALICE! _Gritou Otton.

_Pai eu... _Começou Alice aos prantos.

_ALICE! _Gritou Otton com os olhos fechados.

_Não... Não sabia. _Alice olhou para a irmã tentando se desculpar com os olhos.

_Anne balançou a cabeça e voltou a chorar.

_Anne Marrie você vai arrumar suas coisas... _Disse Otton enquanto as lágrimas escorriam pelo rosto.

_Pai não, por favor! _Interrompeu Alice abraçando a irmã.

_Arrume suas coisas e saia dessa casa agora. _Continuou Otton. E por mais que isso lhe doesse muito, para ele Anne não merecia ficar no mesmo teto que um dia sua amada esposa Ellen morou. _Você não merece viver no mesmo teto que sua mãe, então pare de chorar, arrume suas coisas e deixe esse lar que não merece tanta vergonha, tanta imundice, sua cara de pau de dormir com um rapaz e me olhar na cara. Você está gr... _ Otton parou de falar, pois voltou a chorar, mas forçando os olhos fechados e respirando fundo continuou. _Sabe o que mais me machuca é a mentira, a falta de respeito com sua mãe. Portanto a senhorit... Ou melhor, a mais nova senhora... Eh... Como é o nome dele mesmo? _Otton começou a rir de nervoso. _Meu Deus! Eu nem conheço o rapaz, nem sei quem é que estava com minha filha, mas agora isso não é mais problema meu, e é melhor mesmo que eu não saiba quem é o sujeito. Vamos ver agora se ele vai querer namorar. A senhora pode sair agora, eu estou lá na sala esperando você sair, pra chamar o chaveiro. Eu vou trocar a fechadura, sem dinheiro eu imagino que você venha pedir arrego. Só falta agora você querer tirar a criança, além de uma bela vagabundinha de merda vai virar assassina.

_PAI! _Gritou Alice enquanto abraçava a irmã. _Para com isso vai, ela pode ficar pelo menos por enquanto, ela não tem lugar pra ir...

_Alice! _Disse Otton com os olhos fechados.

_...Eu sei que esse bebê é um problema, mais depois a gente resol...

_ALICE! _Gritou Otton, com a mão na testa. _Pára de tentar proteger essa imundazinha metida a inocente, o problema não é o neném, não é a gravidez, isso são as conseqüências das atitudes imaturas, juvenis da Anne. Ela que agüente sozinha. Você já é maior de idade se quiser ir com ela a porta está aberta, por enquanto viu, por enquanto.

_Mas pai eu tenho minha faculdade. _Disse Alice.

_Que bom né Alice, pelo menos você pensa no futuro, tem os pés no chão. _Disse Otton fazendo sinal para Joaninha, que já estava chorando, voltar pra cozinha.

Anne só conseguia chorar, otton a encarava e se emocionou a ver a filha em pranto, lembrou dela quando pequena brincando com a irmã e a mãe, mas antes que se arrependesse e voltasse atrás na sua decisão:

_Já essa aí, essa aí, vai pegar as coisas dela e sumir da minha casa. _Disse Otton, se dirigindo em direção do closet de Anne. _Vai pegar essa roupas, compradas com muito suor, com o meu trabalho, pra ela usar na vagabundagem, na escola se é que ela ia à escola, eu não quero nem imaginar quantas mentiras você contou, quantas foram preciso pra tapear o otário aqui, o idiota que acreditava que a filha dele era menininha, mas de menina ela não tinha nada. Piranha, vagabunda! _Disse Otton, enquanto atirava as roupas de Anne na cama e pelo chão.

_Pega suas malas que eu te dou 10 minutos, ouviu? 10 minutos, pra sair daqui. _Otton saiu do quarto de cabeça erguida.

Alice soltou a irmã, e a encarou:

_Olha aqui, para de chorar, tá bom? _Disse Alice tentando parar de chorar, e secando com as mãos as lágrimas no rosto de Anne. _Nós vamos sair dessa viu, é bom que eu fique aqui, eu vou te ajudar, tá bem. Ele não pode me proibir de te ver, você pode ficar num hotel aqui perto, eu tenho um dinheirinho guardado do meu estágio, você vai pegar ele e se hospedar lá por hoje. Amanhã eu deixo de ir à faculdade, e vou lá ficar com você, eu vou te ajudar, nós vamos pensar em alguma coisa. Depois eu mesma vou atrás do Humberto, pra contar pra ele. Ele já tá formando não tá?

Anne balançou a cabeça positivamente.

_Então, ele já tá trabalhando e tudo que eu sei. Eu vou lá falo com ele, e ele vai ter que casar com você. Não agora é claro, depois, daqui a algum tempo. Mas ele te leva pro apartamento dele até lá. Vai dar tudo certo viu. E o papai da uma de durão assim mas no fundo ele não é desse jeito, você sabe que não é, tem a história dos avós dele a mamãe morreu, ele já sofreu muito na vida. Mas ele vai voltar atrás depois, ele vai te procurar, você vai ver.

Anne já estava parando de chorar, as palavras de Alice a consolaram.

_Agora nós vamos pegar suas roupas, não precisa levar tudo hoje não. Depois eu vou te levando o resto. _Disse Alice, se levantando.

Anne continuou sentada na cama e passeando os olhos pelo quarto tendo certeza que seria pela última vez, ela parou quando viu o teste de gravidez caído no chão bem próximo da caixinha. Enquanto Alice saltava as roupas e pegava no closet uma mala para arrumar as roupas da irmã. Depois de ver a irmã arrumando suas roupas na mala Anne voltou a chorar, Alice tentando ajudar chamou a irmã para ajudar a fazer a mala. Chorando as duas terminaram a mala e juntaram o resto das roupas dentro do closet, quando Joaninha chegou com dois copos de água.

_Oh meninas, o que foi isso? _Disse Joana com os olhos marejados. _Eu pensei que o Doutor ia matar você menina, as duas né. Pra onde cê vai meu pai do céu?

_Calma Joaninha, ela vai ficar no hotel hoje, amanhã a gente vai arrumar um lugar melhor pra ela ficar. _Disse Alice, segurando o ombro da irmã, que enxugava as lágrimas.

_Olha menina Alice, a Anne pode ficar lá em casa, mas não tem luxo nenhum não.

_Obrigada Joana, muito obrigada mesmo, mas a gente da um jeito viu, obrigada amor. _Disse Alice sorridente à Joaninha.

As três então saíram do quarto em direção a sala, esperando encarar seu pai novamente Anne foi pra sala com uma mala na mão e abraçada no ombro pela irmã que segurava sua mão com força.

_Eu não vou deixar ele te machucar viu, ele não vai falar mais nada, a gente vai sair bem rápido antes que ele fale qualquer coisa. _Disse Alice, dando força à irmã. _Eu vou te levar para o hotel viu. Vou ficar com você lá hoje, depois eu volto pra cá mais a noite e amanhã volto no hotel pra gente decidir o que fazer. Mas se quiser eu durmo lá com você hoje.

_Não Lice, não precisa. _Disse Anne, nas suas primeiras palavras depois da briga. _Eu quero ficar sozinha. _Mentiu Anne, ela maquinava na sua cabeça outro plano.

Joaninha foi na frente para ver onde Otton estava e voltou correndo.

_Meninas o pai de vocês não tá lá na sala não, eu acho que ele deve ter ido pro quarto dele. _Disse Joana. _Ou então saiu.

_Não sair ele não saiu não. _Disse Alice. _Bem eu acho que não né. Mas melhor assim a gente sai sem confusão. Joaninha quando a gente chegar lá no hotel eu te ligo aqui, pra você me contar onde o papai se meteu.

_Pode deixar menina Alice, eu fico aqui, vou fazer um chazinho e ver se ele tá lá no quarto. _Disse Joana em direção à cozinha.

Anne deixava naquele momento a casa onde viveu durante anos, desde sua infância, triste ela não estava, via depois daquela porta a chance de realizar seus sonhos, de correr atrás deles com os próprios pés. Sair da rédea curta do pai e parar de falar tantas mentiras, e o melhor de tudo poder ficar com Humberto pra sempre, gritar pro mundo seu amor por ele, sem medo de ser descoberto por alguém.

Alice e Anne caminhavam sobre o hall do edifício Flor de Julho e Alice se assustou quando olhou para Anne e encontrou no rosto da irmã um sorriso ao invés de lágrimas. Sem entender Alice continuou andando ao lado da irmã, tentando achar uma razão no meio da confusão para explicar o sorriso de Anne Marrie.