domingo, 25 de maio de 2008

Capítulo 4: A nova casa de Anne Marrie

Na sala os pequeninos móveis foram colocados cuidadosamente nas estreitas paredes amarela e branca. Os quadros mostravam grandes campos floridos e vasos vastos de flores. Num canto uma mesinha sustentava um grande buquê de margaridas frescas. O caminho até os quartos e a cozinha era pequeno e apertado, mas o branco da parede deixava tudo mais claro e arejado, as janelas com grades arabescadas num tom de rosa claro. No teto o gesso desenhava grandes curvas que cuidadosamente se enrolavam em uma espiral no centro.

Incomodado com o pequeno sofá que mal cabiam suas ancas, Otton se revirava no móvel pra encontrar uma posição mais relaxante, mas já desistindo de tentar, encarou a filha sentada na sua frente em uma poltrona extremamente pequena num tom amarelo ovo.

Anne tremia dos pés a cabeça, apesar de não gostar muito do seu pai, pelo menos tinha a consciência de respeitá-lo. Afinal ela não sabia mediar o amor que sentia pelos outros, mas não era burra o bastante, e tinha o mínimo de respeito estimado por Otton. E naquele momento digamos que ela estava amando mais a sua ex-recém-amiga como nunca amou seu pai na vida.

_Como que você está aqui? Tá tudo bem? Quero dizer. Vocês estão vivendo de quê? _Começou Otton o interrogatório.

Anne pensando no melhor para sua irmã disse:

_Eh... A mãe da Ju... Da Juliana, foi quem deu a casa e está pagando todas as contas. _Disse Anne, perceptivelmente nervosa.

Juliana estava na cozinha fazendo café nas coisas novas da casa recém comprada. Queria assim pensar Anne. Mas ela sabia que Juliana estava provavelmente tentando ouvir a conversa no quarto ao lado.

Otton olhava para casa que pra ser uma casa de boneca só faltou ser menos, o que não estava muito longe de ser. Aflito ele passava a mão no rosto, sem encarar a filha e Anne sabia que isso era mais difícil pra ele do que pra ela.

_Você... Já melhorou dos ferimentos? Eu soube pela sua irmã, mas já está tudo bem né? _Disse Otton com a mão na garganta, engolindo seco.

_Pai? _Perguntou Anne no tom mais alto usado até agora pelos dois, desde que entraram para dentro.

O céu já voltava a clarear do lado de fora.

Otton olhou assustado e sabia o que aquilo significava.

_Eh... _Começou Otton. _...Seu avô me disse uma vez que quando minha mãe lhe faltou o respeito ele a deixou trancada durante dias no quarto, até que ela viesse pedir desculpas. Ele falava essas coisas pra me deixar com medo, mais do que eu já tinha dele. Então sempre vinha com umas histórias dessas pra me contar. E em todas elas ele dizia no final à frase que vem me dando forças pra suportar isso tudo que aconteceu nos últimos tempos com... Você. _Otton olhava para Anne que não demonstrava nenhuma receptividade com seu texto nostálgico. _ “Todos os heróis foram vilões um dia.”.

Demonstrando no olhar molhado todo o significado daquela frase, não teve total compreensão do outro lado da sala, e Anne ainda olhava para ele estável emocionalmente então Otton continuou seu discurso emocionado:

_Quando eu tinha a sua idade mais ou menos eu não entendia o que essa palavra realmente poderia dizer, qual era o significado dessa bobagem que saía toda vez da boca daquele velho maldito. Eu não podia entender. Até que vocês apareceram na minha vida. Sua mãe, Alice e você. Tudo que fiz até agora era para que vocês fossem um dia alguém de bem, pessoas bondosas. Então impus regras a vocês e esperava que fossem cumpridas. Então pude enfim entender a frase tola que meu avô dizia todos os dias. Que de tola não tinha nada, era de uma profunda sabedoria e mesmo que eu não o pudesse perdoar por seus atos primitivos de educação que me deu, eu pude extrair daquele velho a coisa que moveu minha vida pra frente, que me fez ter uma família exemplar. Eu tinha orgulho de voltar pra casa todas as noites e encontrar minhas três garotas e por mais que eu brigasse ou xingasse elas continuavam me amando. Mas quando eu gritava, brigava e colocava vocês de castigo eu jamais dizia a frase maldita que me perseguira por toda vida, não seria justo colocar um cargo grande desses em cima de duas garotas que de longe nunca seriam o grande vilão que me tornei. Achava justo morrer com a herança do velhote. Vocês nasceram pra serem sempre as mocinhas e nunca as vilãs, nunca. _Otton secava as lágrimas que caiam com a mão antes mesmo que elas chegassem ao meio do rosto.

Anne mudara o modo de assistir ao desabafo do pai, agora ela estava de lado ao invés de d’frente, e não porque sentia nada pelo pai é que o neném não parava de chutar. Mas pra ela eram somente dores, ela nem sabia se o neném tinha já os pés. Mas Otton continuou mesmo assim sem a comoção da filha pelo seu discurso.

_Eu era o monstro, sabia, aceitava e exercia bem essa função. _Otton quase parou quando viu Anne balançar a cabeça positivamente. _Eu era o vilão, e estava preparado para o papel contanto que vocês virassem pessoas melhores, como meu avô fez comigo. Mas comecei a perceber que a recompensa de no final ser considerado herói não ia realmente acontecer, quando ouvia você e sua irmã reclamado nos quartos, como as portas não ficavam fechadas eu podia ouvir. Eu ouvia sempre, todas às vezes, todos os dias a pessoa terrível que eu era. Isso acabou comigo, eu virei quem eu sempre desprezei o meu avô. Mas eu não podia mais conter, estava tudo tão fora de controle, tão perdido com o tempo, eu não conquistaria vocês novamente se começasse a lhes dar balas ou deixar vocês saírem à hora que quisessem.

_Você devia ter tentado. _Disse Anne, sem poder conter as palavras na boca.

Otton sem querer lhe lançou um olhar de cortar o ar, o bom e velho olhar de vilão de que ele falava. Mas percebendo o que acabara de fazer voltou a falar antes que o monstro adormecido viesse à tona:

_Então... Eu tentei mudar, mas sem sua mãe para me dar apoio foi difícil, incontrolavelmente saiu das minhas decisões racionais, tudo passou a ser instintivo. Quando descobri aquele dia que você estava grávida... Você pode imaginar como eu fiquei por dentro? Você não era mais minha mocinha, o meu esforço foi em vão. _Otton enterrava o rosto nas mãos, mas em segundos voltou a erguer a cabeça mais ainda olhava as mãos molhadas com as lágrimas salgadas. _Colocar você pra fora, foi pra mim como jogar o lixo fora, a fruta estragada da caixa, antes que ela contaminasse o resto. Eu não podia aceitar você assim, ir contra meus princípios, minha educação, meu fardo. Mas... _Otton olhou pra Anne que agora secava as primeiras lágrimas do seu rosto perfeito.

Agora ele não conseguia mais impedir as lágrimas de escorrerem rapidamente do seu rosto, Anne voltara para sua posição inicial. O visível arrependimento do pai a emocionou muito. Será que ela poderia amar ele como nunca foi capaz de fazer?

_Mas aqueles dias sem você lá em casa foram torturantes, suas coisas, seu cheiro, seu sorriso... Oh seu sorriso foi o que, mas doeu ficar longe, lindo como o da mãe... A Alice até que tentava me convencer a te aceitar de volta depois do que aconteceu com você e aquele lá...

_O Humberto. _Disse Anne novamente sem contar as palavras dentro da boca.

_É. O Humberto, eu não queria que você passasse por isso filha, te protegi tanto na vida, daria a minha pela sua para te ver fora de perigo, quando descobri o que ele fez... Tentar te matar? Olha eu não gosto nem de pensar nisso agora, da vontade de p... _Otton Suspirou fundo e continuou rapidamente. _Enfim. Quando pensei na possibilidade de perder você. Quero dizer, e se você morresse lá naquele apartamento como que eu ficaria, como eu me sentiria? Talvez o pior dos homens. Talvez um bom pai, por ter dito “Eu avisei”. Mas a que preço o orgulho me cobraria. Sua vida? Minha mocinha? Meu anjo?

Otton se sentava agora apenas na pontinha do sofá com as mãos nas mãos de Anne que sem as mãos pra conter as lágrimas molhara todo o rosto.

_Eu precisava sacrificar algo, em troca da minha filha. Em troca do meu bem maior... Você! O que adiantava ser herói depois de morto, se eu jamais receberia essa fama. Estou aqui pra começar a tentar ser herói, agora. Em vida. Agora que eu posso receber a glória toda, o amor e um olhar gentil em minha direção e não medo. Eu quero te pedir minha filha minhas humildes desculp...

Anne abraçou o pai como nunca fez antes. Nunca com tanto amor.

Os dois permaneceram ali abraçados até que as lágrimas secaram no ombro do outro. Juliana agora trazia uma bandeja de café com cuidado. Tremendo de emoção a ex-recém-amiga de Anne Marrie chegou à sala e pai e filha se soltaram sentando com cuidado cada um para um lado. E com desculpa de ir ao banheiro Anne se pôs de pé e seguiu muito feliz para o banheiro em seu quarto.

Olhando para o espelho Anne abriu um sorriso exagerado. Era bom sentir mais alguém ao seu lado. Agora mais do que antes, seu pai, irmã e amiga nunca foram tão amados quanto eram agora. Absurdamente amados, somente perdendo para Humberto, que só de lembra Anne se excitava e ao mesmo sentia medo. Sentindo a barriga novamente ela se lembrou também do amor que tinha que dar a coisinha em sua barriga e temendo nunca amar ele muito como amou Beto, ela tirou o sorriso do rosto...

TOC! TOC! TOC!

...Anne se assustou com as batidas na porta.

_Anne? Seu pai quer ir embora está te chamando para se despedir. _Disse Juliana, do outro lado da porta. _Você está bem?

_Estou. _Disse Anne, olhando para o espelho de novo.

Anne ergueu um sorriso e se sentindo maravilhosamente bem com os seus amores, agora muito, ela voltou à sala onde encontrou o pai de pé na porta.

_Pai, o senhor já vai? _Perguntou Anne.

_Oh minha filha, você está bem?

_Tô pai.

_O que era no banheiro?

_Nada...

_É que a sua amiga me falou que...

_Tá tudo bem pai, relaxa. _Disse Anne.

Otton ficou olhando Anne por alguns segundos com os olhos ainda molhados, balançou a cabeça positivamente, fez um breve aceno com as mãos pra Juliana e saiu pela porta. Anne seguiu o pai pelo jardim, o céu voltara a sua cor normal, o sol brilhava forte no alto. Acompanhada agora de Juliana, Anne seguiu seu pai com os olhos durante seu caminho de volta.

A cozinha mais parecia um tabuleiro de xadrez, nas cores preto e branco os azulejos alternando as cores preenchiam todas as paredes do cômodo, os móveis vermelhos deixavam o ambiente com cara dos anos 50. Juntas as duas amigas lavavam a louça depois do lanche que fizeram após a visita de Otton. Juliana lavava e Anne enxugava.

_Anne agora fala aqui só pra mim. Você perdoou mesmo o seu pai? _Perguntou Juliana enquanto ensaboava uma xícara.

_Ju que pergunta é essa? Claro que perdoei, eu o conheço e sei que foi muito difícil pra ele fazer aquilo. _Disse Anne sinceramente.

_Não. Eu quis dizer que... Assim. _Juliana agora parava com as mãos sobre a pia e olhava pra Anne. _Você acha que ele estava falando a verdade? A Alice está falando pra ele te perdoar desde quando ele te expulsou de casa, porque agora, hoje?

Anne ficou olhando para amiga, tentando procurar uma resposta que confirmasse a credibilidade de Otton. Mas não conseguiu pensar em nada muito inspirador:

_Ah, sei lá. Cada um tem seu tempo. Ele foi bem convincente. Ah Ju pára! Você ouviu a conversa toda.

_Eu não...

_Ah pára! Não tem problema não, eu faria o mesmo.

_Foi mal. _Disse Juliana. _É que eu fiquei preocupada, não esperava que seu pai lhe pedisse perdão, ou desculpas. Meu pai me contava umas histórias dele que eu e minha mãe ficávamos até com medo. Minha mãe pra me fazer medo me falava o Otton tá vind...

Juliana parou de repente quando percebeu que estava ofendendo o pai da amiga. Mas ao contrário do que Juliana pensou Anne estava gargalhando.

_Do quê você está rindo? _Perguntou Juliana automaticamente.

Anne se recuperou da crise hilariante que teve e começou:

_É que... Eu e a Alice também tínhamos medo dele quando a gente era pequena. Nós brincávamos de casinha e ele sempre era o assaltante que seqüestrava nossas bonecas. Tudo de mentirinha. _Anne olhou pra janela e continuou. _No meu prédio todo mundo tinha medo dele, ele sempre teve aquela cara fechada, o único que fazia ele rir era a mamãe, assim pelo que eu lembro. Depois que ela morreu, ele nunca mais riu, de nada. Por isso eu to rindo porque você ficou com medo de eu brigar com você. Devia ver sua cara de assustada.

Juliana forçou uma risadinha, enquanto pegava outra porcelana pra lavar.

_Sei lá né. Você acabou de fazer as pazes com ele e tudo e eu aqui falando mal dele. _Disse Juliana.

_Sem problemas. Eu conheço meu pai e sei do que ele é capaz. Mas confesso que fiquei surpresa com a visita dele hoje também. _Disse Anne, com o ar desconfiado. _Na verdade agora que a minha ficha caiu. Eu não to dizendo que o meu pai é um monstro ou coisa assim, mas a fama dele fala por si própria. Qualquer pai faria o mesmo que ele fez ou pior, mas ele está sendo muito gentil né?

_O meu pai. _Começou Juliana, enquanto passava um prato molhado para Anne. _O meu pai também me colocou pra fora de casa, mas ele nunca foi como seu pai, assim tão bravo. Na verdade ele é até bonzinho demais sabe, foi pelo menos. Sabe o que parece? Que seu pai e o meu trocaram de personalidade.

_É parece mesmo. _Anne secava um prato sem nem ao menos olhar para as mãos, agora ela repassava na memória a conversa que ela teve com o pai mais cedo, minuto a minuto. Palavra por palavra.

Sem encontrar resposta para explicar o novo comportamento do pai, Anne repetia insistentemente cada palavra na cabeça. A história de vida e as coisas que Otton falou faziam sentido para ela, pelo menos por enquanto.

Deitada na cama Anne olhava para o teto enquanto passava carinhosamente a mão na barriga a fim de despertar nela algum sentimento. O medo que ela tinha de não amar o bebê como deveria a tirava o sono, ela se conhecia, sabia que podia amar ou não, e de forma exagerada. Se o amor pela criança não começasse agora, ela pensava que não poderia surgir depois.

Passou sol, passou lua, as folhas caíram, a chuva molhou os gramados do jardim, a blusa foi de P para G em pouco tempo. Cinco meses se passaram e Anne repetia o que fazia toda noite desde que seu pai veio pedir perdão aquela tarde. Acariciava a barriga tentando produzir um sentimento que era até aquele momento um fardo para ela, o amor. Ela sentia há muito tempo algo pelo bebê, não amor. Isso não. Ela sentia o pé dele na costela, toda vez que ele chutava. Sempre muito bem arrumada, Anne mesmo com uma melancia na barriga desfilava com os mais diversos modelitos e não somente das grávidas que se vestiam com vestidos floridos e macacões para gestantes, Anne despertava inveja até para as que estavam normais, as não grávidas. O seu corpo continuava o mesmo, os braços muito finos e as pernas longas e secas. Anne não se incomodava com o volume extra, adorava a experiência de ser “gorda” por uns meses.

Na rua todos comentavam das duas vizinhas adolescentes que moravam no castelo cor de rosa. Todos as evitavam por causa das notícias que envolviam Anne e Humberto, apesar de que tudo já estivesse sido esquecido pela mídia, os vizinhos faziam questão de lembrar quando passavam em frente ao castelo, ou quando as encontravam no supermercado. Havia alguns que até falavam que as duas eram gays. E Anne chegou a ouvir isso de uma mãe que correu para tirar sua filhinha de perto dela enquanto ela caminhava pelas ruas calmas do condomínio, mas continuou reto e sorrindo. Juliana não agia da mesma maneira, chegou a discutir com um senhor já de idade que virou para as duas na padaria e disse: “Na minha época isso dava forca”.

Anne entendia a amiga e fingiu uma outra vez sentir raiva de um comentário bobo de uns rapazes da mesma idade enquanto passeavam no shopping para fazer compras para o menino. Ah é!

Era um menino. Todos diziam para ela não perguntar do sexo da criança para os médicos. Mas porque tanto mistério? Anne se perguntava todas as noites enquanto acariciava sua barriga. Ela pensava que quanto mais conhecesse o bebê talvez fosse mais fácil para o seu coração aceitá-lo.

As duas recebiam poucas notícias de Humberto. Somente as que Alice trazia de vez em quando em suas visitas semanais ou pelas revistas da alta sociedade que ainda faziam questão de lembrar na legenda das fotos o fato de Anne ter tentado matar o grande herdeiro do milionário Eduardo Fonseca.

A cada edição da revista Society, Humberto saia nas fotos das mais badaladas festas com uma garota diferente e entre uma e outra Anne reconheceu o nome na legenda da famosa Poliana Seranova, a garota da faculdade, que pelas notas mantinha um relacionamento bumerangue com Humberto, de idas e voltas.

Mas sabendo das recentes aparições do amado na Society Anne se recusava a olhá-las quando Juliana sempre chegava com uma nas mãos. Mas Juliana sempre comentava com ela, e Anne às vezes até sentia ciúmes, tamanha era insistência de Juliana no assunto “Humberto”. Mas fazendo força para não transparecer e começar uma briga com a amiga Anne se limitava em dizer: “_Nem reparei que era ele.”. Fazendo Juliana parar de falar sobre ele na hora.

Juliana ainda estava indo a escola, e quando chegava em casa contava a Anne como foi o seu dia. Na maioria das vezes chegava contando que foi parar na diretoria por causa das constantes brigas com outras meninas que insistiam em zombar da cara dela e falar mal da amiga. Os meninos também não ficavam atrás quando o assunto era atormentar Juliana. Ela contava a Anne que eles sempre a chamavam para sair enquanto davam gargalhadas com os amigos. Não estava fácil para Juliana agüentar a barra sozinha, se pelo menos ela tivesse alguma amiga do lado, alguém para lhe dar apoio. Ela já até havia comentado com Anne que estava pensando em largar os estudos e esperar o bebê nascer para que as duas enfrentassem a situação juntas, mas sempre quando recebiam a visita de Soraia, mãe de Juliana, elas descartavam essa possibilidade. Soraia acreditava que quanto mais cedo Juliana se formasse, mais fácil seria para o seu marido perdoar a filha. Como fez Otton.

O quarto estava escuro, somente a luz fraca do abajur projetava pequenos elefantes amarelos que rodeavam aquele ambiente feminino. Forçando os olhos pra deixá-los fechados tentando atrair o sono, Anne estava no 224º dia de gravidez e a quase 100 acariciava a barriga tentando amar o menino. Como aconteciam todas as noites ela não conseguia dormir e por isso ouvia Juliana chegar de suas constantes noitadas. A amiga sempre chegava de carro, e Anne sabia que não era boa coisa. Porque se o cara com quem ela estava saindo tinha um carro, significava que ele era mais velho e também sabia que a última experiência com homens mais velhos da amiga não acabou bem. Sem querer ser chata ou dar uma de Otton, Anne nunca questionou a amiga sobre a identidade misteriosa do homem do carro, e Juliana também nunca tocou no assunto. “Talvez Juliana tenha medo de eu roubar o namorado dela de novo.”. Pensou Anne, que nem cogitava a idéia de se envolver nos mesmos problemas outra vez, primeiro que seria difícil ela amar outro homem de novo como amava Humberto e segundo que no estado em que se encontrava ninguém iria trocar um belo corpinho jovem, por um corpinho vestido de ovo.

Anne ouviu a porta do carro bater do lado de fora da janela e algumas risadinhas abafadas, ela esperava ouvir depois daquilo o barulho do carro partindo pela rua e assim poderia dormir sossegada, mas diferente disso a outra porta do carro bateu, isso fez Anne abrir os olhos. Agora encarando o teto levemente iluminado ela percebeu as risadinhas se aproximarem da casa e logo em seguida a porta da sala se abrindo. Anne continuou deitada com a mão na barriga, mas havia parado de esfregá-la, o bebê podia esperar ser amado mais tarde. E olhando em direção da porta do quarto entre aberta ela viu por debaixo dela a luz da sala acender e em seguida ser apagada, e fazendo um esforço para ouvir a conversa ela se pôs de pé na parede que dividia os dois cômodos:

_Pára! _Disse Juliana baixinho. _A Anne tá dormindo logo ali, ela pode acordar.

_Que nada, ela nem vai ver. Deve estar sonhando com o Beto. _Disse o homem.

Anne percebeu que ele a conhecia, mas ela não reconhecia a voz.

_Já disse que ela superou isso né. _Disse Juliana. _Ela nem gosta de falar nele, nunca falou na verdade. Ela tá sofrendo.

_Que nada. _Continuou o homem com a voz ofegante, com certeza estava beijando Juliana enquanto falava. _Ela só tá sofrendo por não poder ir correndo pra ele agora, e evita falar sobre ele pra disfarçar a falta que ela sente dele.

Anne ficou chocada como alguém podia a entender tão bem.

_Sério? _Juliana dava pequenos gemidos. _A Society só fala dele ultimamente, mas ele se orgulha do que fez com ela, orgulha sim.

_E não é pra menos. _Disse o homem.

Anne agora esperava ouvir a voz de Juliana a defendendo da opinião desse homem de voz grossa. Mas ouviu somente uma risada junta a do homem.

_É certo isso que a gente tá fazendo? _Perguntou Juliana obviamente ao homem.

_Qual outro jeito Ju? _Disse o homem. _É você lhe dando com a situação.

_Mas porque a gente não fala logo? _Disse Juliana.

_Porque não daria certo. Nós já conversamos sobre isso, tudo há seu tempo, pra ser perfeito precisamos de tempo. Já não tá tudo combinado?

_Tá! Mas...

_Mas o que Ju, todo mundo vai saber na hora certa, eu não vou dar o fora tá beleza? Relaxa amor, relaxa.

_Calma! _Disse Juliana.

Anne colou mais os ouvidos na parede, e percebeu que Juliana havia se afastado do homem.

_Juliana! Pára de se preocupar. Quando for a hora vai dar certo. _Disse o homem.

_Eu sei. É que eu sou ansiosa pra caramba. E é tudo muito grande, não vou conseguir esconder isso muito tempo, eu moro com ela. _Disse Juliana.

Anne arregalou os olhos, teve certeza de quem estava com a amiga na sala era o seu amado Humberto, mas a frase a seguir tirou todas as suas dúvidas.

_Você tá com medo de que eu seja igual ao Humberto né? _Disse o homem. _Bom eu não sou, graças a Deus. Eu não vou te deixar na mão como ele fez, mas se você engravidar ai é outra história.

Anne teve certeza, não era Humberto, então sorriu.

Os dois sorriam na sala enquanto Anne voltava pra cama, feliz. Não pela amiga, que provavelmente ia cair em mais uma cilada, mas feliz por ela, por que essa cilada não tinha nada haver com Humberto e a amiga, juntos. E diferente das outras noites Anne dormiu rapidinho embalada pelos gemidos de gozo dos dois na sala. Dormiu sorrindo e com as mãos embaixo do travesseiro e não na barriga. É, e o bebê ainda não era amado.

O sol batia nos olhos de Anne, quando ela acordou às nove da manhã. Levantando com dificuldade para enxergar na claridade que invadia o quarto àquela hora, ela se lembrou rapidamente dos fatos que antecederam seu melhor sono depois de 100 noites. Sem razão aparente ela sorriu e correu pra janela para ver como era o carro do homem misterioso, mas ele já não estava onde Anne imaginou que ele estivesse e se lembrou que Juliana provavelmente já havia acordado pra ir à escola. Ainda feliz e descansada ela arrastou os pés até a sala levemente bagunçada. E para sua surpresa viu os materiais da amiga sobre o sofá, e logo sentiu o cheiro de chá de camomila vindo da cozinha. Correu o máximo que podia com o barrigão e viu a amiga sentada na pequena mesinha perto do fogão com as roupas amassadas. Juliana se assustou com a chegada surpresa da amiga àquela hora na cozinha, e devagar colocou a xícara sobre a mesa e engoliu o chá rapidamente, com certeza estava quente, pois antes de falar Ju pôs a mão sobre a boca para não expulsar o líquido pra fora:

_Anne? O que você está fazendo acordada uma hora dessas? _Disse Juliana.

Anne ainda não sabia se contava a amiga sobre a noite anterior. “Vou contar.” Pensou.

_NÃO! _Gritou sua consciência.

Anne continuou ali parada olhando a amiga enquanto pensava no que dizer a ela. “Ela não vai entender, vai pensar que eu estava espionando. E o pior, que a ouvi transando e pensar que eu, sei lá, estava gostando, ou gozando.”. “Não! Definitivamente não vou contar.”

_Eu ouvi você chegando ontem. _Disse Anne, num total desacordo com ela mesma. Dormiu demais, talvez isso a tenha deixado um pouco perturbada. Mais?

Juliana olhou para janela, pras paredes, pro chão, pra xícara, para os bolinhos em cima da mesa, e pra Anne, que se não conhecesse a amiga o bastante jurava que ela era um avestruz procurando um lugar pra enfiar a cabeça.

_Como?

Anne bateu a mão na testa, enquanto procurava sair da situação e achou o que seria a melhor solução.

_Só ouvi você entrando. Acordei com o barulho da porta lá da frente. Mas nem vi que horas eram. _Disse Anne.

Juliana já havia parado o olhar em Anne:

_Não ouviu mais nada não.

_Eu não, tinha tomado um remédio e dormi rapidinho, um daqueles calmantes da sua mãe que estão lá no banheiro. _Mentiu Anne enquanto se sentava à mesa e pegava um dos bolinhos.

_Ah tá! _Disse Juliana, com expressão de alívio.

_Eu deveria escutar alguma coisa?_Anne sorria.

_NÃO! _Gritou Juliana corada nas bochechas.

_Credo Ju. O que você tava aprontando heim menina? _Disse Anne tentando parecer ignorante diante daquela situação.

_Nada Anne, desculpa amiga. É que hoje tinha prova e eu perdi, sabe. Cheguei muito tarde ontem, não consegui acordar hoje. _Disse Juliana enquanto preparava o chá pra Anne. _Mas você tem certeza que não sabia que horas que eu cheguei?

_E que horas eram? _Perguntou Anne, que realmente não sabia que horas eram na hora da rapidinha da amiga na sala com o homem do vozeirão.

_Sabe que eu não sei. _Disse Juliana forçando um sorriso.

Anne continuou para o silêncio não invadir a cozinha e Juliana não suportar mais segurar o sorriso na boca:

_O que você estava fazendo na rua heim mocinha? _Disse Anne, como se ela não soubesse.

_Eu? Nada. _Desmanchando na hora o sorriso Juliana voltou a enfiar a xícara na boca.

_Sei. _Anne queria continuar a questionar a amiga para que ela percebesse que realmente ela não sabia de nada, mas ficou com medo de se trair de novo. Vai saber né.

As duas continuaram ali sentadas enquanto se deliciavam com o chá, conversando agora sobre outro assunto, a capa da Society da semana. Anne odiava aquilo, detestava aquela revista, pois ela sempre a fazia lembrar de Humberto e o pior, ele sempre estava com outra mulher que não era ela. Envolvida no assunto ela continuou arrastando a conversa até que correu para o banheiro pela décima vez para fazer xixi, ela fazia muito aquilo nos últimos meses, passava mais tempo no banheiro do que em outro lugar da casa.

A gravidez representava para Anne tudo que havia de ruim, além de transformar a vida dela por completo, como ela ter perdido o amor de sua vida, ter tentado matá-lo, quase ter sido linchada na rua várias vezes, ser conhecida na vizinhança como a grávida assassina ou como lésbica sorridente, dividir uma casa estranha com sua maior ex-inimiga e ter que dividir o amor que ela tinha antes só por Humberto agora entre quatro, o pai, a irmã e a recente melhor amiga, ela tinha que fingir, fingir estar feliz com aquilo tudo, fingir que não amava mais Humberto, fingir que amava o bebê e ainda sorrir. Mas ela estava disposta a enfrentar, esperava com o tempo amar o bebê, que até agora ela nem havia pensado num nome e mesmo sabendo disso não se esforçava em pensar em nenhum outro a não ser HUMBERTO.

Os dias seguiram e Juliana ainda continuava a chegar de carro toda a noite com o tal homem, ou não. Anne só escutava o carro chegar agora e, mas nunca mais ele entrou em casa de novo. Talvez porque Juliana estava com medo de acordar a amiga que podia alguma coisa que não deveria ouvir. Como normalmente fazia, Anne levantou e foi direto ao banheiro naquela manhã fria de setembro, como já passava das doze da manhã Juliana já estava em casa e pra variar na cozinha onde passava maior parte do dia tirando as horas no carro é claro. Sentada na troninho de louça encarando os azulejos da parede oposta e passando a mão nos cabelos sedosos que desciam até as costas soltos e voando com a leve brisa da manhã que entrava pelo basculante do banheiro Anne pensava no que iria fazer depois que saísse dali, do banheiro. Não tinha muitas opções é verdade, mas existia duas, almoçar de uma vez ou tomar café da manhã. Era uma decisão difícil a tomar, pois dependendo do que o bebê queria naquele dia a escolha errada resultaria em muitas contrações. Mas rapidamente mesmo sabendo disso Anne decidiu. Iria almoçar. E antes que pudesse mudar de idéia a dor começou, e corroeu-a por dentro, era forte demais, segurando no sanitário para não cair no chão e se contorcer por inteiro ela manteve ali congelada até a dor passar. Passados dois minutos, uma eternidade para ela que sentiu cada segundo se arrastar, Anne não se assustou pelo fato de ainda estar fazendo xixi. E tirando as mãos das laterais do vaso cuidadosamente como se a dor fosse ativada por sensores a movimentos ela calmamente voltou a sua posição inicial e depositou carinhosamente a mão sobre a barriga:

_Tá bom! Vamos tomar café então, eu nem queria almoçar mesmo. _Disse Anne com lágrimas nos olhos, resultado da sua contração.

E agora havia percebido que havia um belo tempo que estava sentada ali. Fazendo xixi?

Tentando olhar por entre suas pernas a fim de descobrir a fonte de tanta urina Anne então abaixou a cabeça sobre a barriga e se arrependendo amargamente do que havia feito, começou a sentir a mesma dor de novo. A dor era mais intensa agora, ardia forte e sem que ela mesma pudesse controlar soltou um grito agudo. O que foi um combustível para dor que aumentou incontrolavelmente e a fez gritar dessa fez mais alto e mais forte, como se a tivessem torturando.

_ANNE? _Gritou Juliana do outro lado da porta.

Anne estava tentando se levantar, para abrir a porta, mas sem poder se sentou novamente obrigada.

_É o bebê. Tá doendo minha barriga. _Anne dizia calmamente, enquanto as lágrimas escorriam pelo seu rosto.

_Abre aqui Anne. _Disse Juliana.

_Não consigo ficar em pé. _Disse Anne fazendo um esforço enorme para que o que saísse da sua boca fossem palavras e não gritos.

_VOCÊ CAIU? _Gritou Juliana, que agora forçava a maçaneta como se isso a fizesse entrar mais rápido.

_Não, eu to sentada. _Disse Anne com dificuldades entre um grito e outro.

_Anne? Calma amiga tá bem? Tenta levantar e abrir a porta. _Disse Juliana nervosa. _Você está tendo o bebê agora.

_O QUÊ? _Disse Anne, que encontrou forças do nada e num salto se pôs de pé e abriu a porta.

_Ai meu Deus, o que você está sentindo? _Disse Juliana que ajudava a amiga a chegar na sala.

_Não sei. Tá doendo muito. _Disse Anne agora no sofá, enquanto olhava a amiga correr até o telefone.

_A bolsa arrebentou? _Perguntou Juliana enquanto aguardava alguém responder na outra linha.

_É... Acho que sim... _Forçou Anne pra dizer. _...Eu fiz xixi uns dois minutos. Será que não era a bolsa?

_Sem dúvida. _Respondeu Juliana, que reconheceu a voz da Alice do outro lado do telefone.

_Alô? _Disse Alice com a sua voz meiga habitual.

_Lice? _Disse Juliana. _A Anne vai ter o bebê. AGORA!

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