domingo, 27 de julho de 2008

Capítulo 13: Na mão de Anne Marrie

_Eu não posso ficar aqui por muito tempo então fale de uma vez. _Disse Anne ao se sentar em uma das mesas da cantina da clínica.

_Não finja que não está interessada menina Anne. _Disse a Enfermeira se sentando em seguida.

_Por favor, pare de me chamar assim. _Pediu Anne. _Diga logo onde esta a identidade, me deixa ver!

_Calma mocinha, calma! _Disse a Enfermeira se servindo de café. _Vamos tomar um cafezinho, relaxar.

_Relaxar? _Disse Anne aflita. _Deixa eu ver logo essa identidade! É mentira não é?

_Não senhorita não é. _Disse a Enfermeira. _Eu queria lhe contar como foi que tudo aconteceu.

_Tudo? _Perguntou Anne curiosa. _A senhora viu alguma coisa?

_Não. _Disse a Enfermeira servindo Anne o café. _A senhorita aceita?

_Não, obrigada. Fale de uma vez. Meu Deus! _Disse Anne suando frio.

_Meu nome é Doroti. _Disse a Enfermeira com muita calma ao estender a mão sobre a mesa.

Anne mesmo relutante em desperdiçar tempo para apresentações foi com a mão de encontro com a da enfermeira. Sem que ela percebesse o aperto de mãos foi breve quem viu da mesa ao lado achou um tanto quanto rude da parte de Marrie.

_Está bem. Por onde quer começar? _Perguntou Doroti que começou a tremer muito quando disse essas palavras.

_Não sei. Eu não sei o que você sabe. _Disse Anne que nem se importou com o repentino desconforto de Doroti.

_Essa história não deveria ser revelada. Nada disso que eu vou te dizer vai mudar o que já passou, nada. _Disse Doroti, olhando para os lados e visivelmente nervosa.

_Onde está a identidade? _Perguntou Anne que a cada segundo ficava mais aflita pra saber de tudo. Ou de pelo menos do que Doroti tinha pra dizer.

_É tudo muito complicado. Eu não iria te contar nada se não estivesse realmente feliz em te ajudar. _Disse Doroti tremendo as mãos e na tentativa de disfarçar o nervosismo elas as escondia sobre as vestes brancas.

Isso fez Anne saltar da cadeira no mesmo lugar.

_Está aí? Deixa-me ver, por favor. _Disse Anne excitada diante de uma nova prova.

_Não! Calma menina, calma! _Disse Doroti segurando a mão de Anne que logo percebeu que não havia nada nas mãos da enfermeira.

_Cadê a identidade? _Disse Anne diante da decepção.

_Não está aqui. _Disse Doroti arrependida de ter começado uma conversa. _É melhor a gente deixar isso pra lá. O que eu tenho pra dizer não vai te ajud...

_Não agora a gente já está aqui e a senhora vai falar o que me obrigou a ouvir. _Disse Anne.

Doroti virou de lado na cadeira olhou para os lados e varias vezes para a porta da cantina e resmungou baixinho:

_Não fale a pena.

_O quê? _Disse Anne.

_Nada, não é nada. _Disse Doroti virando os olhos e voltando a sua posição inicial.

_Me fala logo Doroti. Posso te chamar de Doroti não é? _Disse Anne.

_Pode Anne. Claro que pode. E eu posso te chamar de An... _Disse Doroti.

_Pode sim. _Disse Anne sem perceber. _Mas me diga logo. FALA!

Doroti respirou fundo e voltou a olhar para a entrada da cantina.

_Não é justo que você sofra mais. A vida não foi justa com você. _Disse Doroti. _Eu quero que você saiba que isso não vai mudar o que ele foi.

_Ele quem? _Perguntou Anne.

Doroti respirou fundo mais uma vez e com os olhos molhados lançou a Anne um dos mais piedosos olhares que ela já vira.

_Seu pai. _Disse Doroti triste.

_Meu pai? _Perguntou Anne sem entender. _O meu pai? Mas o que ele tem haver com isso?

Doroti enxugou as lagrimas que começaram a rolar.

_Ele te amava, mais do que a qualquer um. _Disse Doroti chorosa. _A senhora Alice é uma ótima filha mais tenho certeza que ele preferia você. Pelo desafio entende. Você o fez rever os seus próprios conceitos. Mas ele te amava.

_Esperai, o que a senhora esta me dizendo? _Disse Anne totalmente confusa. _Eu realmente não estou entendendo o que o meu pai tem haver com a identidade.

_Nada, ele não tem nada haver com isso. _Disse Doroti. _Ele só gostaria que eu te dissesse isso.

_Você não conhecia o meu pai, mas mesmo assim eu agradeço a preocupação. _Disse Anne. _Mas me fale sobre a identidade, vamos desenrolar logo esse assunto.

_Eu conhecia ele sim. _Disse Doroti.

_Claro, você trabalhava aqui na época que ele era vi... _Começou Anne.

_Não! _Disse Doroti olhando para a entrada novamente, como fazia a cada segundo.

_Como não? A senhora não trabalhava aqui na época? _Disse Anne.

_Trabalhava mas... _Doroti parou no meio da frase e colocou a mão na boca e deixando que a lágrima escorresse solta pelo seu rosto.

Anne não estava entendendo o que ela estava querendo dizer. O que aquela senhora queria afinal?

_Olha eu agradeço o carinho que a senhora tinha pelo meu pai e agradeço que você tenha se comovido com a minha história, mas a senhora me trouxe aqui para quê afinal? _Disse Anne. _Eu já nem sei se existe essa tal de identidade.

_Ela existe menina, ela existe. _Disse Doroti. _Mas a senhorita tem que entender que essa historia toda pode parecer complicada no começo, mas eu preciso disso, eu preciso contá-la.

_Eu entendo Doroti, acho que entendo. _Disse Anne ansiosa. _Mas a senhora precisa começar a dizer logo.

_Me desculpe? _Disse Doroti com as mãos na bochecha.

_Pelo o que Doroti? _Perguntou Anne. _Vamos fale de uma vez.

_Está bem. _Disse Doroti olhando para a porta novamente.

Doroti respirou alto, secou as lágrimas, ofegou propositalmente como se dissesse a si mesma para tomar coragem e então começou:

_Eu trabalho aqui nessa clinica desde que sua mãe era viva. Eu me dava bem com ela aquela época a clinica ainda era bem pequena e os funcionários eram poucos. Todos nós, o pessoal da enfermagem a recepcionista e até os faxineiros tinham um relacionamento muito forte e intenso. Nós éramos todos muito amigos do seu pai e de sua mãe também. A gente freqüentava a sua casa quando tinha festas, alguma reunião, qualquer coisinha. Nós só andávamos juntos o tempo todo.

Doroti parou por um momento olhou para Anne piedosamente e depois se virou novamente para a entrada.

_O que tanto você olha? _Perguntou Anne, que estava inquieta ao esperar alguma resposta no discurso de Doroti.

_Hã? Nada. _Disse Doroti que nem mesmo reparava que repetia o movimento a toda hora.

_Continua. _Pediu Anne.

_Esta bem. _Disse Doroti fechando os olhos como se estivesse se preparando para voltar a se torturar.

_A senhora está bem? _Disse Anne.

_Estou bem sim, obrigada. _Disse Doroti abrindo os olhos novamente.

_Porque a senhora está sofrendo tanto assim? _Perguntou Anne. _Não é possível que goste de mim tanto assim.

_Não é isso. _Disse Doroti.

_O que é então, porque a senhora sofre tanto com a minha história? _Perguntou Anne.

_Porque não estou contando sua história, estou contando a minha. _Disse Doroti.

Anne não entendeu porque Doroti queria lhe contar sobre sua vida, mas não queria interromper novamente. Decidiu aguardar e ouvir a velhota. Doroti até havia se preparado para responder e ficou parada sem resposta quando viu que não foi questionada.

_Vamos! Continue. _Disse Anne.

_Não me julgue uma qualquer, mas na época eu era inocente e tenho certeza que seu pai não queria magoar sua mãe. _Começou Doroti que nem se atreveu a parar de falar novamente, pois o olhar de Anne dizendo “Continue” a fulminava. _Seu pai veio até mim uma noite em que nós aqui da clínica estávamos todos comemorando o aniversario de um dos funcionários da época, não me lembro do nome dele agora, mas eu lembro que era bem amigo de seu pai também fora da clínica. E durante a festa seu pai se aproximou de mim, mas eu não percebi que ele estava bêbado nem nada, nós costumávamos conversar nas pausas para o lanche aqui e ele me parecia boa pessoa. Então ficamos conversando a noite toda. Quando eu ia embora ele me ofereceu carona para casa e eu não pude recusar, São Paulo era violenta naquela época também, não tanto quanto hoje mas era. Eu tinha medo de voltar sozinha, já estava de noite e eu não podia me arriscar.

Doroti parou e olhou novamente para a porta e agora ao invés de voltar a cabeça ao normal ela continuou virada de costas pra Anne, que não estava entendendo mais nada daquela conversa. O porquê de tanto choro e dor. Será que ela era tão amiga assim de Otton que realmente sentiu tudo que ele passou nos seus últimos anos de vida de forma tão forte.

_HEI! _Gritou Anne para Doroti voltar a contar sobre a noite da carona.

Doroti virou assustada.

_Oh, desculpe. Eu me distrai. _Disse Doroti.

_É. Isso acontece de vez em quando. Mas continue pra eu ENFIM poder entender. _Disse Anne aflita para entender a história de Doroti.

_Onde eu estav... Ah! Me lembrei. _Disse Doroti. _Olha eu vou encurtar a história por que eu não quero que isso fique ainda mais constrangedor pra mim e pra você.

_Ótimo! _Exclamou Anne contente.

_Àquela noite seu pai e eu ficamos juntos. _Disse Doroti tremendo da cabeça aos pés.

Anne entendeu cada palavra que saiu da boca de Doroti e apesar de lá no fundo do seu coração sentir muito pela sua mãe, pobrezinha, que foi carneada e talvez morreu sem saber disso, ela não conseguia entender o que isso teria haver com a tal identidade.

Nunca julguem a Anne mal, ela tem suas ambições e objetivos na vida. Não se zangar pelo fato do pai ter traído sua mãe é totalmente normal quando no coração o espaço que eles ocupam é mínimo. Tão pequenos, tão insignificantes, ainda mais agora que estavam mortos, que não podiam ser ressaltados por suas vidas passadas em quanto o número um, o mais espaçoso, preferido e amado no coração de Anne era seu filho Gérard.

_Você me trouxe aqui só pra falar do meu pai? _Perguntou Anne.

Doroti enxugava as lagrimas e ouvir o que Marrie disse levantou o olhar e a encarou descrente.

_Como pode! Eu te contei o segredo que seu pai guardou durante anos, durante todos os anos da sua vida e você não se importa? _Disse Doroti.

_Isso foi uma noite somente, todo mundo comete seus erros na vida. _Disse Anne.

_Mas quem disse que foi somente aquela noite? _Disse Doroti e falava num tom desafiador enquanto o medo desaparecia dela.

_Teve outra? _Perguntou Anne.

_Eu era amante do seu pai durante esse tempo todo menina Anne. _Disse Doroti, se recuperando vagamente. _Depois daquela noite a gente continuou a se encontrar. Ele me manteve aqui quando seu filho foi roubado. Eu fui a única que estava de plantão naquela noite que ele não despediu, adivinhe porque.

Anne se viu agora totalmente interessada na historia.

_Você era amante do meu pai? _Anne sorriu. _E pra que você está me dizendo isso.

_Porque eu achei que você se importaria com a imagem dele e por sua mãe. _Disse Doroti descrente na felicidade de Anne.

_Eu me importo, mas não da maneira que você queria. _Disse Anne ainda sorrindo. _Eu não acredito nisso que você disse, você fez esse drama todo só pra pegar dinheiro não foi?

_Eu realmente sentia muito em ter que te contar essa história por isso eu chorava. _Começou Doroti. _Devia ter deixado pra lá, você não precisa da ajuda de ninguém. Quando Otton me falava do seu gênio eu não acreditava.

_Você nem me conhece senhora. _Disse Anne.

_Seu pai me falava de você e por isso eu sei que ele te amava e que mais do que ninguém queria que eu te ajudasse. _Disse Doroti que voltou a olhar para porta e num grito abafado ela se levantou.

Anne se assustou com a atitude de Doroti, ela parecia cada vez mais doida e descontrolada.

_Tudo bem senhora? _Perguntou Anne.

Mas Doroti não respondeu, se virou devagar, encarou Anne novamente, fechou os olhos e voltou a se sentar.

_Eu vou ser rápida eu preciso ir embora agora. _Disse Doroti.

Anne não replicou a fala da velha com medo de prolongar ainda mais essa conversa sem pé nem cabeça.

_Bem vamos lá. _Começou Doroti trêmula. _Eu e seu pai éramos amantes, ele morreu e me pediu que cuidasse de você, mas me pediu que não lhe revelasse a verdade sobre nosso relacionamento. Estou aqui agora para te ajudar como prometi a ele. Na noite em que seu bebê foi seqüestrado eu estava trabalhando no berçário e vi quando o homem que chegou aqui dizendo ser o seu marido, o Humberto, e levou seu bebê. A enfermeira que entregou o bebê pra ela era minha amiga na época e ficou muito triste quando foi despedida. Naquela noite eu entrei na recepção para pegar a sua ficha e achei em cima do balcão a identidade do homem que havia roubado seu filho horas antes. Peguei a identidade e a coloquei no bolso para entregar a você ou a seu pai, mas quando todos ficamos sabendo do seqüestro, no meio da confusão eu me esqueci dela no bolso.

Anne sorriu como nunca havia feito antes. Pela primeira vez depois que as duas sentaram naquela mesinha na cantina Anne havia se empolgado com as palavras de Doroti. Agora toda história fazia certo sentido. Mas esperai?

_O que você fez com essa identidade? _Perguntou Anne.

_Hã? _Perguntou Doroti como se não esperasse essa pergunta.

_O que você fez com a identidade? Pra quem você entregou? _Perguntou Anne.

_Como? _Doroti parecia confusa. _Eu não sei.

_Não sabe? _Anne estava confusa. _Onde esteve a identidade esse tempo todo?

Doroti voltava a tremer e a olhar para a entrada. Parecia um tique nervoso.

_Comigo! Ela esteve comigo este tempo todo. _Disse Doroti. _Comigo.

Anne não conseguia acreditar no que estava ouvindo, a raiva foi lhe subindo no peito como o leite que ferve na panela (Odiei essa analogia). Aquela mulher que estava olhando pra ela naquele momento havia guardado uma das coisas que Anne julgava de mais importância para que ela encontrasse o filho, o seqüestrador e quem sabe assim ela não iria ter matado Humberto e nem Poliana à-toa.

_Você guardou a identidade do seqüestrador do meu filho durante quase 22 anos e só agora está me dizendo isso? _Começou Anne. _Eu matei um homem, o pai do meu filho porque eu pensava que era ele que tinha pegado meu bebê. Matei também uma mulher por acidente, mas mesmo assim fui condenada a 25 anos de prisão longe do meu filho esses anos todos. Sem poder procurá-lo e sabendo que ele estava aqui fora crescendo sem saber quem é a sua mãe de verdade. E você guardando esse tesouro.

Doroti voltara a chorar nervosamente.

_Eu não queria Anne, não queria mesmo. _Disse Doroti antes de levara mão ao rosto para secar as lágrimas.

_Não queria o quê, acabar com a minha vida? _Disse Anne.

_Não é isso. _Disse Doroti. _É tudo tão injusto com você. A vida é tão injusta com você.

_Ah é? Se sinta responsável por quase tudo de errado que aconteceu nessa minha vida desprezível. _Disse Anne.

_Eu não queria. _Disse Doroti.

_Me diz que meu pai não sabia. _Pediu Anne.

_Não. Ele não sabia de nada, eu guardei por inocência minha. Achava que não ia ser útil pra você. _Disse Doroti. _Achava que você não ia sair procurando o seqüestrador por ai como você fez.

_Mas o que você ganhou guardando isso esse tempo todo? Porque não mostrou a polícia? _Anne tentava entender o porquê de Doroti ter escondido a identidade.

_Não sei. EU NÃO SEI! Está bem? _Disse Doroti nervosa. _Eu coloquei no fundo da gaveta e esqueci disso lá.

_E porque agora? Porque você decidiu desenterrar esse assunto? _Disse Anne. _Você poderia ter me ajudado antes, não acha.

_Eu tenho minha vida, sofri muito quando seu pai morreu. Não me lembrava dessa identidade, você já estava presa mesmo. E mesmo que eu lembrasse, de que adiantava? _Disse Doroti.

_E como você lembrou agora? _Perguntou Anne.

_Quando seu pai morreu e me fez o pedido pra que eu te ajudasse, eu fiquei pensando o tempo todo em você, no que eu poderia fazer. _Disse Doroti. _Fui fazer faxina lá em casa e quando mexi na gaveta achei a identidade, foi um sinal. Eu acho que foi um sinal do seu pai.

_Pára de enrolar. _Disse Anne zangada.

_Não me culpe Anne, não tive culpa do que te aconteceu. _Disse Doroti.

_Teve sim. _Disse Anne. _Doroti, a senhora deixou perdida no fundo da sua gaveta uma prova que iria me ajudara a encontrar meu filho.

_Desculpe! _Doroti voltou a olhar para a entrada. _Me desculpe Anne, eu estou aqui para em desculpar a todo mal que lhe causei.

_Muito mal não é senhora Doroti? _Disse Anne revoltada. _Você foi amante do meu pai, traiu a minha mãe que te conhecia mas não sabia das suas caronas com o papai, ignorou uma prova criminal a escondendo na gaveta e por fim acabou com a minha vida. Sim, você deve desculpas.

_Desculpe, desculpe. Está melhor assim? _Disse Doroti. _Mas agora vamos embora rápido, eu preciso sair daqui.

_Porque? Agora não. _Disse Anne. _Primeiro você vai me entregar a identidade.

_O quê? Ah tá! _Disse Doroti se distraindo ao olhar para entrada.

_O que a senhora tem? O que tanto olha lá fora? _Perguntou Anne.

_Nada, nada. _Disse Doroti. _Vamos logo com isso, antes que eu tenha um ataque do coração.

_Eu não sei por que isso está sendo tão torturante pra você. _Disse Anne. _Mas não vou ser eu que vou te atrasar. Onde está a identidade?

_Espera aqui. Eu deixei lá na minha bolsa. _Disse Doroti.

Doroti virou-se de costas e ia caminhando quando:

_Hei? Esperai! _Disse Anne. Como você sabia que eu ia vir aqui hoje?

Doroti pensou um pouco, passou a mão na cabeça e disse:

_Eu não sabia. Só que estou carregando a identidade comigo na bolsa, tive medo de perdê-la.

Doroti saiu pela porta da cantina e sumiu pelos corredores da clinica enquanto Anne seguiu até a sala de recepção e decidiu esperara Doroti por lá.

Anne estava eufórica por dentro, uma prova concreta e real do seqüestrador do seu filho seria determinante para que logo o achassem e o prendessem. Melhor do que isso era a chance de achar o seu filho também, ou de ter mais uma pista de seu paradeiro. Ela acreditava que tudo não passava de uma grande caça ao tesouro, cada pista levaria a outra, que levaria a outra e que por fim levaria até o X que marca onde o filho dela se encontra. Não é realmente empolgante? Seu lado Alice a estava dizendo que aquilo tudo podia ser uma grande armação, um golpe para arrancar dinheiro. Esse lado careta e responsável dela chamado de Alice era bem parecido com aquilo que a gente vê nos desenhos animados, a consciência em forma de anjo que vinha sempre dar bons conselhos. O pior era que o anjinho nem tinha chance quando o diabinho aparecia dando maus conselhos. E adivinhem o nome desse diabo? Anne Marrie. O diab... Quer dizer, a Anne, não via golpe nenhum da parte de Doroti. Ela não havia tocado no a$$unto e parecia estar disposta a entregar a identidade sem pedir nada em troca.

Doroti vinha caminhando calmamente com a bolsa pendurada no braço, olhando para todos os lados, parecia se esconder de alguém, temia que fosse vista. Ou pelo menos era essa a impressão que a Anne teve. Ela se aproximou parou na frente de Anne que se pos de pé na mesma hora ansiosa pra ver logo a pista. Digo, a identidade.

_Onde está? Me deixa ver! _Pediu Anne.

_Eu vou te entregar isso e ficar livre logo dessa situação. _Disse Doroti estendendo a identidade para a Anne.

Doroti mal acabou de entregar a identidade a Anne e seguiu em direção a saída, dessa vez sem olhar para os lados.

Na mão de Anne Marrie estava uma prova concreta, uma incontestável pista de onde poderá estar seu filho naquele momento. A assinatura era igual à de Humberto, o nome, a idade, os pais, a data de aniversário, tudo. O único elemento com certeza que diferenciava aquela identidade falsa da verdadeira era a foto: No lugar de traços fortes, queixo másculo, e olhos azuis como era Humberto, estava lá um homem de meia-idade com os cabelos loiros, os olhos verdes e um aspecto esquelético parecido com o ator Guy Pearce. Uma mistura da feiúra com a beleza. Um homem charmoso, fisicamente não muito atraente apesar do cabelo loiro, os olhos claros e o porte de super-herói, mas um homem. Tem quem goste. E Anne não gostou.

Anne agora estava prestes a ir para a próxima pista. Ou será que essa pista a levaria direto para o “X”?

Veja você mesmo, aqui.

domingo, 20 de julho de 2008

Capítulo 12: A Enfermeira e Anne Marrie

Marceline brincava no quintal com Olivier enquanto a babá Luzia os vigiava de longe com sua cara de brava, mas com o coração de uma fada. A casa ao fundo era incrivelmente gigante, minto. (Eu exagerei um pouco aqui). Era grande comparada às outras, mas não era nada ostentoso, até tinha um ar de mal acabada. E realmente era. As madeiras que a cercavam já estavam velhas e meio soltas. Alice havia pedido a Luís que mandassem reformar, mas a vida dos dois nos últimos anos havia mudado bastante desde o tempo da faculdade. O Salude agora era uma das clínicas particulares mais procuradas de São Paulo, o bom trabalho e o investimento de Luís e Alice fizeram do lugar um bom exemplo de dedicação e competência, mas Otton atrapalhou os planos de Luís que pretendia ampliar o seu negócio junto com a esposa. Não por implicância como era de costume da parte dele, mas pelo triste fato de seu falecimento. Com a morte de Otton, Alice teve que assumir as rédeas da Clínica Bom Viver (a clínica da família) e o trabalho junto ao marido ficou impossível. Cada um trabalhando de um lado da cidade, ele bem próximo de casa no Salude e ela bem ao centro onde ficava a clínica. Mas eram uma família perfeitinha, o estilinho americano de vida. Os filhos em uma boa escola, empregos seguros, uma babá confiável e outros detalhes que os tornavam felizes, ah um cachorro. Não poderia faltar não é mesmo? Se isso fosse uma história fictícia diriam que foi tudo planejado.
Luzia já tinha idade para ser avó das crianças, vivia uma vida solitária e não rejeitava o fato de ter que dormir no trabalho assim evitava voltar para sua casa em Minas Gerais. Nos feriados e em datas especiais para a família dela os patrões a deixavam ir até Minas visitar os parentes e conhecidos. A vida foi cruel e rude para ela, mas por fim ela encontrou o melhor lugar de todos para dedicar os últimos anos de sua vida. Nos anos seguintes ela viria a morrer, mas isso eu prefiro não comentar por agora. As crianças a respeitavam como foram ensinadas a fazer, mas às vezes a pequena Marceline a destratava e se sobressaía na situação por ser a “patroa”, mas isso não fazia Luzia deixar de amá-la, nem a ela e nem a Olivier que sempre foi doce e gentil com a, como dizia ele, Vovó.
Olivier era o mais velho dos filhos do casal. Tinha já seus quinze anos e ao contrário das outras crianças da sua idade ele era bem caseiro e pensava no futuro. Preocupado com sua carreira ele revidava sempre o pai quando ele mencionava a palavra médico. O sonho pela arte era descomunal, dono de um talento excepcional para pintura ele já rabiscava suas pequenas obras-primas. Alice adorava o interesse do filho pela arte e o apoiava em todas suas decisões em relação a uma possível carreira, já Luís não era todo sorrisos como a esposa, ele realmente queria que o filho seguisse carreira médica como ele e a mãe, mas não o reprimia ou o julgava por algo mas também não escondia seu desapontamento. Olivier não ligava muito desde que ele pagasse a escola de artes. Marceline tinha apenas 7 anos e era bem diferente do irmão, era mimada e soberba na maioria das vezes, com uma personalidade muito forte ela já era bem responsável e bem imponente nas suas decisões. Ela parecia bastante com sua tia que nunca a viu. Mas ela e Olivier estavam perto de conhecer a tia, a que tanto ouviram falar durante anos. Alice evitava que eles vissem os jornais e as revistas com medo de que eles lessem algo sobre a tia que não gostariam de saber, mas ela não podia controlar os cliques na internet.

Enquanto Marceline corria atrás de Olivier em volta da piscina, Bob o cachorro os perseguia ameaçando lançá-los na piscina a qualquer momento e de longe Luzia ria dos três patetas se divertindo. Olivier e Marceline pararam de repente ao ouvirem o barulho do carro entrando na garagem a frente da casa, Bob topou nos dois quando sem que ele percebesse seus donos pararam abruptamente. Luzia levantou num salto e fez sinal as crianças para que entrassem rapidamente. Nos corpos dos dois as roupinhas compradas especialmente para receber a titia, e na mente a curiosidade os assustava e a excitação diante do encontro fazia o coração de ambos baterem forte debaixo das costelas. Passando pelos cômodos que faziam da casa uma grande casa, e isso quer dizer muitos cômodos, eles correram até a sala e se fincaram diante da porta, enfileirados para ver a tia entrando. Luzia vinha logo atrás tentando disfarçar a curiosidade de ver Anne Marrie de perto. A porta abriu devagar e Luís entrou primeiro enquanto Alice e Anne se desvencilhavam dos repórteres do lado de fora.
_Ah crianças vocês já estão aí? _Disse Luís assustado ao vê-los esperando tão comportadamente, isso incluía a babá.
Passados alguns segundos depois de tanta gritaria do outro lado da porta Alice entrou com Anne ao seu lado.
_Meu Deus, nem depois de tanto tempo esse povo não nos dá sossego. _Disse Alice.
_Isso me deixa triste, ver que isso ainda continua igual. _Disse Anne. _A imprensa continua sendo a... imprensa.
Anne parou e olhou para as crianças que a encaravam encantados, eles até a tinham visto em fotos, mas não podiam imaginar que 20 anos de prisão não fizessem nenhuma diferença na aparência da tia. Ela não era somente bonita, era mágica, soltava no ar pequenas partículas que brilhavam ao seu redor, ela tinha luz, a emitia e quando abriu um sorriso, de longe o mais lindo que já haviam visto em suas curtas vidas, a beleza soberba invadiu seus olhinhos. Anne só conseguiu sorrir ao ver depois de tanto tempo uma criança, mal havia parado para pensar que conheceria seus sobrinhos. E eles continuavam a encará-la e sorriam para a mãe para que ela fizesse as honras de apresentá-los. Eles queriam tocá-la logo para ver se ela era de verdade.
_Ah é Anne eu nem lembrei de falar deles. Eles não falam em outra coisa a não ser em você. _Começou Alice. _Anne, esses são Marceline e Olivier, meus filhos.
Anne sorriu e abriu os braços para abraçá-los e eles não viram oportunidade melhor para agarrar a bela tia. Num piscar de olhos os dois já apertavam os braçinhos em volta de Anne que retribuiu o abraço com carinho e logo pensou no seu filho que aquela altura já estava bem maiorzinho.
_Meu Deus que abraço gostoso! _Disse Anne quando os meninos finalmente a soltaram.
_Tia porque você estava presa? _Perguntou Marceline.
_Marceline! _Disseram quase todos da sala ao mesmo tempo com exceção de Anne.
_Calma crianças, a tia de vocês tem que descansar agora. _Disse Luís. _E o que foi que eu disse sobre as perguntas heim dona Marceline?
_Nada de perguntas sobre a prisão. _Respondeu Marceline abaixando a cabeça.
_Ah não fica assim Marceline, depois a titia te conta tudo. _Disse Anne. _Prometo que respondo todas suas perguntas. Todas.
_Tá legal. _Disse Marceline.
_E você rapazinho não vai falar nada com sua tia não? _Perguntou Alice.
_O que foi, está com vergonha? _Perguntou Anne.
_Liga não ele é assim mesmo, quietinho. _Disse Luís.
_Seja bem-vinda tia. _Estendeu a mão Olivier.
_Ai, obrigada Olivier. _Disse Anne sorrindo.
_Agora vamos subir que eu vou te mostrar seu quarto. _Disse Alice.
_Ah claro. _Disse Anne antes de se abaixar para falar com as crianças. _Daqui a pouco eu desço pra vocês me mostrarem a casa toda está bem?
_Tá. _Responderam os dois juntos.
Deixando os quatro na sala Anne e Alice seguiram para o segundo andar da casa. No caminho, penduradas nas paredes Anne viu várias fotos que adornavam o caminho até o quarto. Ao contrário do antigo apartamento da família, a decoração da casa de Alice era bem simples e quase sem luxo, tudo era bem familiar e entre os porta-retratos Anne até encontrou um em que ela, Alice, Otton e Ellen posavam felizes sentados num sofá florido.
_Anne você está ótima, o que você estava fazendo lá dentro, malhando? _Disse Alice que já não estava na sua melhor forma. _Ou tinha aplicação de botóx todos os fim de semanas lá?
_O quê que é isso mesmo? _Perguntou Anne, enquanto Alice ria.
_Nada. _Disse Alice. _Mas é serio, você vai ver amanhã as revistas só vão falar disso, de como você entrou na prisão pior do que saiu.
_Pára Alice! Eu era bem mais bonitinha. _Disse Anne, que não gostava da sua aparência juvenil. _Eu até já reparei que eu tenho um pé-de-galinha aqui oh.
_Que pé-de-galinha o quê. _Disse Alice. _Você tem é vergonha da sua carinha de neném.
_Eu pensei que quando eu tivesse essa idade eu já estaria mais velha. _Disse Anne seria. _Não é possível, eu vou ter sempre essa carinha de neném.
_Ah, se a Marta Suplicy ouvir você reclamando disso, ela te mata. _Disse Alice rindo à beça.
Anne não entendeu muito a piada, mas sorriu gentilmente.
_Pode deixar que depois eu mando o Olivier te atualizar pela internet. _Disse Alice.
_Ai eu estou louca pra mexer nesse tal de internet, lá na penitenciaria não se falava em outra coisa. _Disse Anne.
_O Olivier te ensina a mexer e daqui a pouco você já está sabendo de tudo. _Disse Alice. _Dá pra fazer tudo por ela, dá pra comprar, pagar conta e até arrumar namorado.
Alice se arrependeu de dizer aquelas palavras à Anne, vai saber quando ela pode se apaixonar de novo, sei lá por um cara que clona cartões. Imagina.
_Sério? _Perguntou Anne.
_Mas é bem perigoso, do mesmo jeito que ela ajuda muito todo mundo, também tem muita porcaria. _Disse Alice. _Muitas pessoas já tomaram cano, foram enganadas e até morreram por causa da internet.
Anne ficou calada diante do olhar repressor que Alice sabia muito bem fazer.
As duas enfim chegaram ao quarto de hóspedes. Ao abrir a porta Alice foi até a janela e puxou as cortinas para os cantos, fazendo a luz do sol entrar e iluminar todo o quarto. O quarto era simples e aconchegante como o resto da casa, tinha uma aparência fofa. E digo isso no sentido literário. Parecia que era todo coberto por espumas e não era. O papel de parede lembrava grandes lençóis indianos e a cama forrada com uma linda colcha de retalhos dava ao quartinho um jeitinho todo especial, juntamente com as almofadas jogadas no chão a um canto. As duas entraram e sentaram na cama, depois de Anne elogiar a decoração, o espaço quentinho e cheiroso no qual iria dormir nos próximos dias até conseguir arrumar um lugar pra ficar.
_Você está doidinha como sempre não é. _Disse Alice sorrindo. _Dá pra ver nos seus olhinhos ainda o mesmo brilho que eu via antes.
_Sério? _Disse Anne. _Mas eu acho que eu não mudei muito mesmo não, ainda quero encontrar meu filho e talvez isso tenha me feito esquecer de amadurecer.
_Deus me livre, fica longe de confusão em Anne, agora eu tenho filhos e marido viu sua doida! Eu não vou dar conta de cuidar de vocês todos. _Disse Alice.
_Calma Lice. _Disse Anne. _Agora eu já tenho 38. Eu sei o que estou fazendo.
_Eu to vendo ai oh, que você já está pensando em alguma coisa. _Disse Alice. _Eu já aprendi a ler sua mente menina, já previ tanta coisa.
_Eu mudei. _Disse Anne.
_Não parece. _Disse Alice. _Você mesmo disse que não sentiu que mudou, você ainda está cega para encontrar seu filho.
_Estou mesmo. E agora eu vou fazer a coisa certa, nada de morte eu vou procurar sozinha porque se eu precisar da policia para me ajudar eu estou fodida. _Disse Anne.
_Hum, fora da lei! _Disse Alice. _Até odiar a policia você odeia, parece uma ex-presidiária.
_E eu não sou? _Perguntou Anne sorrindo.
_Infelizmente é. _Disse Alice segurando uma risadinha. _Mas aqui Anne, nada de falar sobre o Humberto, as mortes e seus 20 anos na prisão pros garotos, ouviu?
_Claro que eu não vou falar né Alice. _Disse Anne.
_Bom mesmo, porque eles podem até saber de alguma coisa, mas nunca vão ter coragem de perguntar sobre o que é. _Disse Alice.
_Diga isso pra Marceline. _Disse Anne.
_Mas não responde, não entre na jogada dela. Aquela menina é esperta. _Disse Alice. _Ela vai tentar arrancar a verdade de você.
_Mas pode deixar. Eu vou tentar sair bem dessa. _Disse Anne.
_Ela parece com você em muitas coisas. _Disse Alice.
_Coitadinha. _Disse Anne.
_Como coitadinha? _Disse Alice.
_Lice cá pra nós, a minha vida não foi um exemplo pra ninguém. _Disse Anne.
_Ah mais isso aconteceu porque você não teve sorte de encontrar o cara certo. _Disse Alice.
_Mas ela é menos impulsiva que eu não? _Perguntou Anne. _Sei lá ela não ama demais igual eu.
_Olha você tem consciência disso! _Disse Alice. _Que bom. Pelo menos disso você tem certeza agora.
_Cuidado porque eu to adorando essa cama e eu vou matar a colcha por estar abraçando ela. _Disse Anne sorrindo e se deitando de costas na cama.
Alice sorriu e repetiu o gesto da irmã.
_Pára de fazer piada. _Disse Alice. _Mas não, ela não ama assim como você, na verdade ela não chega nem perto disso. Ela demora bastante a se afeiçoar as pessoas.
Marceline entrou pelo quarto, correu até Anne e assegurou nos pulsos com suas mãozinhas miúdas.
_Vem tia, vem me ajudar a fazer bolo. A Luzia vai ajudar. _Disse Marceline em cima da cama. _Vem, vem!
_Calma Marceline! _Disse Alice sorrindo.
_Eu não sei fazer bolo Marcel. _Disse Anne a Marceline. _Eu não sei nem fritar ovo.
_Vai Anne, você tem que aprender um monte de coisas mesmo, é bom começar pela cozinha. _Disse Alice.
_Está bem. _Disse Anne. _Vai indo que a tia vai atrás de você meu bem.
Anne deu um beijo em Marceline antes que ela sumisse correndo pelo corredor.
_Ela não é nem um pouco impulsiva? _Disse Anne sorrindo. _Acho melhor você rever seus conceitos a respeito dela.
_Ela é um amor, assim como você. _Disse Alice. _Eu senti saudades suas irmã.
_Eu também. _Disse Anne.
As duas se abraçaram como não faziam a muito tempo, o calor fraternal invadiu o peito de ambas e as lágrimas escorreram quase no instante em que se tocaram.
As duas seguiram pelo corredor de mãos dadas.
_Ela é linda, eu vou adorar viver aqui com vocês. _Disse Anne. _Depois eu quero ver os quadros do Olivier.
_Claro, depois você vai à oficina lá fora pra você ver, ele é muito talentoso. _Disse Alice.
Alice encarou a irmã por um breve momento e procurava em suas memórias alguma lembrança em que Anne pareceu tão radiante e tão solidária com crianças. E não conseguiu achar nada. Anne nunca teve uma boa relação com elas. Alice achava que a busca incessante pelo bebê antes da prisão fosse mais uma encenação e não um real amor materno e sim mais uma fez prova do amor dela a Humberto. Mas depois desses vinte anos Alice reconheceu que estava enganada, ela podia ver que sua irmã havia adquirido uma leve maturidade resultada de um longo confinamento que com certeza a fez pensar muito mais nos seus atos irresponsáveis a fazendo refletir somente em coisas boas. Pela primeira vez Alice viu em Anne um fio de sanidade, uma gota de normalidade. O coração dela agora era de mãe e não se limitava a amar somente uma pessoa como antes.
_Você está diferente. _Disse Alice.
_O quê? _Perguntou Anne sem entender a irmã.
_Você! _Disse Alice. _Olha como você está tratando meus filhos.
_O que é que tem de errado? _Perguntou Anne preocupada.
_Nada Anne. _Disse Alice. _É uma coisa boa. Pela primeira vez eu vejo em você uma mãe.
Anne ficou sem palavras.
_Você nunca tratou crianças desse jeito tão carinhoso. _Disse Alice.
_Ah deve ser amor de tia. _Disse Anne sem graça.
_Não. Deve ser amor de novo. Só amor, sem conseqüências. _Disse Alice. _É bom senti-lo não é?
_É. _Mentiu Anne que sabia que o amor havia feito mais estragos em sua vida do qualquer outro sentimento, ele quase a levou a loucura.

A tarde foi de longe a mais perfeita depois desses vinte anos. Bolo de chocolate feito pelas meninas, pintura com dedos no quintal dos fundos, piscina, filme com pipoca e chocolate quente antes de ir dormir já de noite.

Quantas maravilhas o mundo moderno trouxe. A chance de falar com qualquer pessoa de qualquer lugar diferente pelo celular era encantador, fácil, e a cada dia se tornava mais comum entre as pessoas e a cada dia eles ficavam menores, bem menores. É ate difícil imaginar os futuros modelos de celulares, arrisco dizer que vai chegar um dia em que a gente vai colocar uma balinha na boca e um brinquinho na orelha ligados por um fio e pronto. É só falar. A internet se destacava entre a maior novidade para Anne, a mais fantástica invenção da terra. Era quase que uma arma a mais a seu favor, Alice temia quando Anne sentava a frente do computador e a vigiava constantemente. Nos anos 80 ela já fez o que fez, imaginem agora com o orkut a sua disposição. Fora a TV de plasma, o LCD, o reality show, afinal quando você pode exercer a função de Voyeur no conforto da sua casa e meses depois ter carne nova nas revistas para publico adulto. O DVD, a TV a cabo, os efeitos especiais, A máquina digital, o youtube e por fim, não que isso encerre a lista de maravilhas da Anne, mas sim a minha neste espaço, o Ipod. Deixo claro que a ordem das maravilhas não numera as primeiras como melhores e nem as ultimas como “não gostei tanto assim”. E só pra constar, eu nada tenho a ver com essa lista, na verdade não vejo utilidade nenhuma em todos esses produtos, lógico que exagerei ao escrever isso, mas tenho outra lista se quiser saber das minhas maravilhas do mundo moderno. Mas como já disse antes, essa história é de Anne Marrie e nada tenho eu que dar minha opinião sobre nada. Eu só conto a história.
Mas vamos parar com a prosa e voltar aos fatos.

O mês foi maravilhoso e ao contrário do que esperava Anne se deu melhor com Olivier do que com Marceline. A menina se mostrou bem parecida com ela e sabemos que personalidades idênticas não se dão muito bem. O altear de espírito, situação financeira, e beleza de Marceline irritavam Anne a todo tempo sem que ela mesma percebesse que isso a ocorria de vez em quando, não tão frequentemente como na garotinha, mas acontecia. Olivier era como Alice sempre dizia a ela nas visitas à penitenciaria, um talentoso pintor, inspirado pela beleza da tia, que havia se tornado sua melhor amiga, já que ele não tinha muitas amizades, ele começara a desenha-la num quadro e se mostrava dedicado deixando até de comer as vezes. Anne não se preocupava muito com isso, só queria que o quadro ficasse logo pronto, curiosa como ela era, já Alice alertava-o a todo o momento:
_Largue esse quadro e vá comer Olivier.
Luís numa visita a oficina do filho no quintal se chocou ao ver o quadro de Anne, era insanamente perfeito, machucava os olhos tamanha beleza. Tinha glamour e elegância e na ponta dos pincéis a essência de Anne Marrie, a inocência dela. Olivier a cada dia aprimorava mais seu talento, era um esplêndido pintor.
Anne sabia, percebia que Olivier era diferente dos outros garotos, era delicado, educado, dedicado as artes, a cultura, tinha um lado mais infantil e nunca havia tido namorada. Ela sabia que o sobrinho talvez optasse pela arte a fim de se dedicar em tempo integral a ela ao invés de ter que se preocupar em relacionar com outras garotas e esconder o fato de que isso não o agradaria, já se falassem em algum garoto isso mudaria suas idéias. Todos sabiam que Olivier era diferente, não digo especial, mas diferente. Era simples quando ele pensava que o fato de ele gostar de garotos, era simplesmente o fato que ele gostava de garotos, isso não o tornava pior do que ninguém, era somente o gosto natural por homens ao invés de mulheres. Queria ele que seus pais pensassem assim e o resto do mundo também. Alice e Luís já haviam chegado a conversar sobre esse assunto e somente uma vez isso aconteceu. O fato do filho deles ser gay era uma conversa delicada e perturbadora, destilava a educação dada a ele durante esses anos todos, suas atitudes, tudo. Uma busca sem sucesso de onde, em que momento havia acontecido uma falha, um erro que transformou o primogênito da família em um garoto anormal. Não se deixem levar por essa palavra, ela só quer dizer que ele foge aos padrões pregados a um garoto. Mas o assunto era evitado sempre pelos pais, por Anne e por ele mesmo. Olivier sabia do que comentavam, por que ao invés de seus parentes queridos os outros na escola, na rua, na vizinhança o taxavam sempre como o "Pintor veadinho". E para humilhá-lo sempre usavam a velha piada: Você pinta como eu pinto? Que pra ele não tinha graça alguma. Quando ouvia insultos, piadas e conversas desse tipo ele apenas fingia que não as ouvia e às vezes tentava se enganar de que não era gay, na ilusão de que isso mostraria aos outros o que ele tentava acreditar: Que ele não era gay. Havia algumas vezes ele tentado namorar com algumas garotas, ele não tinha nojo, nem as repugnava e quando as beijava, mesmo que por algumas poucas vezes, sentia prazer, tesão e isso o confundiam. Mas o desejo por homens era mais forte, mas na sua inútil tentativa de ser heterossexual ele se surpreendia quando via suas atenções voltadas a um homem. Para sua felicidade ele nunca havia se apaixonado por nenhum garoto, digo isso pelo currículo de amores da família que sempre amaram intensamente e isso atrapalharia todo seu disfarce. Mas mesmo que ele soubesse e se deixava enganar do contrario todos sabiam da verdade. Os pais mesmo sabendo tentavam evitar a verdade a fim de torná-la menos dolorosa, mas se algum dia o assunto viesse à tona ou Olivier estivesse à vontade o bastante para se assumir eles encarariam o fato de frente e amariam o filho de todo o jeito, se não o fizessem já o teriam reprimido, pois a todo tempo sabiam da opção sexual do filho e o fato de ele apenas falar o óbvio não mudaria nada. Não havia preconceito naquela casa, de nenhuma natureza.

(Teste: Para você saber se você não é preconceituoso veja o filme O segredo de Brokeback Mountain e se você não tiver nenhuma repulsa ou não fechar os olhos para evitar ver alguma coisa então pode ter certeza que você não é preconceituoso. Isso porque esse filme nem é dos mais picantes dos muitos filmes gays que existem por ai. Mas pra começar esse é ideal.)

Anne até gostaria de conversar com Olivier sobre o assunto, mas não sabia como começar uma conversa dessas. Ela percebia a infelicidade dele apesar de ele fingir ter auto-estima ao invés de enfrentar seus problemas com ele mesmo e Anne pensava que poderia ajudá-lo com isso. Mas vamos deixar isso pra depois e resumir o segundo mês de Anne morando com a família Vasconcelos. O médico Luís Vasconcelos se zangou menos do que imaginava com a presença da cunhada debaixo do seu teto, Anne se mantinha a maior parte do tempo fora de casa à procura de mais uma pista de seu filho ou no quarto em frente ao computador também em busca de mais pistas. Mas 20 anos só fez apagar o pouco que restava das provas do seqüestro, era uma missão quase impossível descobrir quem foi o homem que fingiu ser o Humberto para pegar o filho de Anne, Gérard, segundo ela. Vamos presumir que essa pessoa que tenha pegado o bebê seja alguém ligado a Anne, alguém bem próximo dela e que a odeie do fundo da alma. Você conhece alguém que odeie Anne Marie tanto assim? Eu digo serio, alguém que tenha motivos o bastante para acabar com a vida dela como fez? Não sei, quem poderia ser? Humberto? Opa, ele já esta morto não é? Difícil pensar em outra pessoa, pois os problemas de Anne se resumiam a ele.

A Clínica Bom Viver estava bem diferente do que havia sido há 20 anos atrás, a tecnologia havia passado por ela, da decoração aos aparelhos médicos. Anne conheceu as novas instalações da clínica e conversou com as novas enfermeiras do local que ficaram curiosas sobre a historia de vida dela, mas tinha uma em especial que chamou a atenção. Ao contrário das outras essa enfermeira era bem velha, e Anne não se zangou quando ela se aproximou com os olhinhos curiosos próximo ao consultório de Alice:
_Ei tudo bem?
_Tudo bem. _Disse a velha Enfermeira. _A senhorita é a Anne não é?
_Sou eu sim. _Disse Anne.
_Eu vi o jornal, quando você saiu e quando você foi presa. _Disse a Enfermeira. _Desculpa.
_Sem problemas, eu já estou acostumada. _Disse Anne.
_Eu conheci seu pai, ele acreditava em você, ele te amava. _Disse a Enfermeira.
_Obrigada. _Disse Anne. _Você conheceu meu pai?
_Conheci, eu conheço você também, sua irmã, sua família toda. _Disse a Enfermeira. _Eu trabalho aqui há muito tempo.
_Há muito tempo? _Perguntou Anne. _Eu não me lembro de você.
_Eu estava aqui quando seu bebê foi roubado. _Disse a Enfermeira.
_O quê? _Disse Anne que estranhou o assunto repentino da enfermeira.
_Eu vi o seu bebê ser roubado. _Disse a enfermeira. _Eu estava aqui.
_Mas porque você está me falando isso? _Disse Anne.
_Não sei, não sei o que te dizer. _Disse a Enfermeira. _Eu entendo a sua dor.
_Obrigada de novo, mas esse assunto me perturba ainda. _Disse a Enfermeira. _Eu preferiria se você não falasse sobre isso.
_Desculpa, é que eu realmente entendo a sua dor, eu já perdi um filho. _Disse a Enfermeira. _Me desculpe mesmo, eu não deveria estar falando sobre isso com a senhorita.
_É que eu ainda estou meio... _Disse Anne.
_Eu entendo. _Disse a Enfermeira. _Mas eu posso te ajudar.
_O quê? Eu não estou te entendendo. _Disse Anne. _Agora eu tenho que ir mesmo, desculpa.
_Eu vi quem levou seu filho. _Disse a Enfermeira.
_Isso todo o mundo já me disse. _Disse Anne. _Me dá licença que eu tenho que ir.
_Eu sei que a senhorita deve estar pensando que eu quero levar o seu dinheiro. Mas eu posso te ajudar. _Disse a Enfermeira segurando o braço de Anne quando ela ameaçou dar as costas.
_Me larga! A senhora esta se descontrolando. _Disse Anne tentando se livrar das mãos da enfermeira.
_Você não pode ir embora sem me ouvir. _Disse a Enfermeira.
_Posso sim. _Disse Anne. _Agora me larga se não eu vou ser obrigada a falar de você para minha irmã.
_Pode falar, você tem que ouvir o que eu tenho a dizer. _Disse a Enfermeira. _Pelo seu pai.
_Que pelo meu pai, me larga. _Disse Anne que enfim se livrou das mãos da Enfermeira e seguiu para o consultório da irmã que ficava no fim do corredor.
_VOCÊ VAI SE ARREPENDER! _Gritou a Enfermeira temendo que Anne não ouvisse o que ela tinha pra falar.
Anne para evitar mais boatos, se virou e fechou os olhos tentando não acreditar na situação.
_Eu vou te dar uma chance, fala o que é. _Disse Anne se aproximando novamente da Enfermeira.
_Eu posso te ajudar. _Disse a Enfermeira que parecia estar transtornada, ela suava muito na testa e não escondia o nervosismo.
_Não. Não pode. _Disse Anne. _Mas eu vou te dar ouvidos por que eu estou com dó da senhora. Mas saiba que depois dessa conversa a senhora estará despedida.
Anne pareceu MArceline ao dizer isso.
_Eu não me importo. _Disse a Enfermeira.
_A senhora é louca? _Disse Anne. _O que você quer? Pra quê isso tudo?
_Pra te ajudar. _Disse a Enfermeira.
_O que é tão importante assim? _Disse Anne. _Você sabe o nome, e o endereço do seqüestrador?
_Não, mas... _Tentou a Enfermeira.
_Então creio que a senhora não pode me ajudar. _Disse Anne irritada e voltou a dar as costas a velhota.
_Eu tenho a identidade dele. _Disse a Enfermeira séria.
Anne virou lentamente e como não fazia há muito tempo, sorriu. A natureza desse sorriso era de nervoso e surpresa diante de uma situação constrangedora.
_O quê? _Perguntou Anne descrente. _A senhora está me dizendo que tem a identidade do seqüestrador?
_Isso. Eu tenho a identidade dele. A mesma que ele deixou aqui no hospital quando roubou sua criança. _Disse a Enfermeira.
_A senhora está passando de todos os limites. _Disse Anne ainda descrente.
_Vamos até a cantina que eu te conto toda a história. _Disse a Enfermeira.
_Eu não vou a lugar nenhum com a senhora. _Disse Anne nervosa. _A senhora está fazendo uma coisa muito erra...
_Venha tomar um café e eu vou te contar a história. _Disse a Enfermeira. _Eu não estou mentindo, eu só quero te ajudar.

Quem será essa velha enfermeira louca? Essa história estava mesmo precisando de um personagem bem louco. Ah esqueci que a protagonista já tem esse título.

A conversa da Enfermeira com Anne Marrie pode ser bastante reveladora. Ou não. As milhares de dúvidas que nesse momento assombram sua mente também ocorreram a Anne naquele corredor frio de hospital. E que tragam o cafezinho!

domingo, 13 de julho de 2008

Capítulo 11: 20 anos depois... com Anne Marrie

A cantina estava realmente vazia antes de começar o intervalo, Alice estava sentada sozinha revisando as ultimas matérias para sua prova do final de semestre enquanto beliscava um pão de queijo e bebia um café com leite quente. Luís se aproximou lentamente por trás dela e quando chegou bem perto a ponto de tocá-la passou a mão na frente dos olhos de Alice. Achando que fosse mais uma das brincadeiras de suas colegas de classe:

_Aline? Pára com isso gente eu estou tentando estudar. _Disse Alice tocando as mãos de Luís tentando se livrar delas.

E realmente se assustou ao perceber que aquela mão grande, cabeluda e fria não pertencia a Aline e a nenhuma de suas amigas, mas sim a Luís, pois era o único homem que tinha liberdade o bastante para se aproximar dela dessa forma.

O tempo fez a amizade entre os dois crescer e eles se tornaram mais do que meros desconhecidos que não passavam do “oi”. Acostumada a ter sempre a amizade das garotas o novo amigo de Alice era um tanto quanto estranho. Não ele em especial, apesar de não ser perfeito, mas digo em relação a sua presença, a presença masculina constante. Depois de não ter comparecido no jantar, Alice havia desalimentado suas esperanças de algum futuro com Luís, mas para sua alegria ele não se zangou logo sabendo dos outros problemas que Alice enfrentou naquela noite diante da prisão de sua irmã. Voltando a falar do estranhamento de Alice com relação a Luís, ela pensava em como era possível um homem e uma mulher conviverem como amigos, sem outras intenções e mesmo que tentasse se controlar diante de diversas situações ela sempre se via na defensiva perante as atitudes de Luís. Um abraço, um toque, um olhar a mais e para Alice ele já estava querendo ultrapassar os portões da amizade e passar por debaixo do arco-íris colorido em busca do prêmio no final, o amor. Não que ela achasse isso ruim, na verdade essas interpretações erronias vinham de uma paixão secreta por ele, mas ela tinha medo de que esse sentimento ultrapassasse os tecidos da face e amolecessem os músculos de seu rosto a fazendo sorrir de qualquer piada que ele contasse, que suas glândulas lacrimais começassem a trabalhar toda vez que ela o via fazendo seus olhinhos brilharem, que seus ossos enfraquecessem toda vez que ele a tocava fazendo suas pernas tremerem, ou talvez que seu corpo interpretasse um simples beijo na bochecha como uma corrida de 50 km e a fizesse suar. Isso acontecia ás vezes, mas começou a assombrar Alice quando além dela, suas amigas começaram a perceber esse encanto por Luís. Ela temia que ele também tivesse percebido e que em momentos com seus amigos machos ele risse da sua inocência e ingenuidade em acreditar que apenas um beijo e um jeito mais carinhoso de tratá-la a deixassem abobada de amor. Às vezes seu lado Anne Marrie aflorava, e sabendo que isso poderia ser totalmente prejudicial ela só o liberava as portas trancadas do banheiro, esse seu lado escuro a fazia desejar que Luís realmente percebesse suas intenções com ele, afinal será que ele sabendo disso não iria tomar nenhuma iniciativa? Mas logo o bom senso e a caretice do seu lado de luz ou consciência chamem como quiser, chamado Alice a dizia que isso talvez não fosse bom porque talvez ao perceber isso Luís quisesse uma noite ou um beijo apenas ao invés de uma vida inteira de felicidade e plena lua-de-mel como ela desejava. Um maior e curto contato a faria sofrer mais. A parceria dos dois em um hospital voluntário na periferia da cidade de São Paulo fez o contato dos dois aumentar ainda mais, como se já não bastasse os torturantes intervalos matinais da faculdade sem poder olhá-lo à vontade, tocá-lo, beijá-lo ela tinha que o encarar profissionalmente durante todo o dia. Lutando contra o desejo de seu pai de que ela assumisse o negócio da família, Alice continuava com sua parceria com Luís no hospital nomeado por eles de Salude sem nenhuma razão especial, nem homenagem a alguém eles apenas gostaram do nome. Com serviços gratuitos a população carente os dois esperavam atingir um nível profissional antes de terminarem a faculdade sem ter que disputarem com os outros colegas uma vaga de estagiário. Otton sabia que esse espírito caridoso só funcionaria mesmo com Patch Adams e que mais cedo ou mais tarde sua filha e seu sócio desistiriam dessa idéia de hospital voluntário, afinal eles tinham que se sustentar de alguma forma e isso não inclui as suas rechonchudas heranças.

_Luís? _Disse Alice assustada.

Luís começou a rir e em seguida se colocou a frente de Alice, sentando na cadeira oposta a dela na mesinha.

_Assustou? _Disse Luís sorrindo com seus dentes claros. (Pra ela os mais brancos que ela já viu)

_Não, eu só estava concentrada demais aqui na matéria da Paula e nem te vir chegando. _Disse Alice tentando disfarçar a vergonha que sentia por ter sido tocada por ele. Uma tarefa quase impossível, pois suas bochechas queimavam como brasa e isso lhe dava o blush mais perfeito do mundo, o natural.

_Eu desci pra tomar água e te vi aqui sozinha. _Disse Luís ainda entre um sorriso. _Eu desisti de estudar pra prova dela ontem mesmo. A Paula deu muito pouco tempo pra estudar, nós entregamos o trabalho dela foi que dia? Anteontem?

_Foi. Mas fazer o quê não é, é nosso último ano e eu quero formar direto. Quem ficar agarrado nela vai dançar, ela não vai passar ninguém facinho não. _Disse Alice, sentindo as bochechas voltarem a sua cor normal.

_E hoje, você vai lá pro Salude? _Perguntou Luís.

_Eu não vou assistir a aula do Bento não, vou ficar por aqui pra estudar pra prova da Paula. _Disse Alice, já no total controle do seu sentimento. Ela estava aparentemente normal. _Lá pras duas horas eu vou lá pro Salude.

_Ontem chegou uma senhora maus lá viu! _Disse Luís.

_O que é que ela tinha? _Perguntou Alice agora realmente parando de estudar um pouco e se servindo de seu lanche.

_Ela estava sentindo umas dores fortes na coluna. Eu dei a medicação e mandei que ela retornasse caso os remédios não fizessem efeito. _Disse Luís.

_Mas ela caiu ou alguma coisa do tipo? _Perguntou Alice, antes de abocanhar o pão de queijo.

_Não. O filho dela que levou ela lá. Acontece que ela tem um restaurante e quando faltam os ajudantes ela mesma vai à feira e ao supermercado. Ela carrega toda a compra nas costas. Eu perguntei pra ela porque ela não larga isso de lado? Ela recebe aposentadoria e o filho dela disse que ajuda com o que ela quiser. Mas não adianta a velha é teimosa viu! Insistiu que não ia largar seu restaurante. Aquele povo que vem do interior sabe? _Disse Luís. _Ah e ela convidou a gente pra ir lá ao restaurante dela.

_Ela nem me viu! _Disse Alice.

_É, mas ela me convidou e eu posso levar uma acompanhante. Quer ir? _Disse Luís sem vergonha.

Alice voltou a corar.

_Mas eu tenho que estudar hoje pra prova da Paul... _Começou Alice.

_Pára Alice, você sempre arruma uma desculpa e é a primeira que abre a boca pra falar que vai sair ruim na prova, e sempre tira a maior nota. _Disse Luís, levemente zangado. _Tenho certeza que você está estudando há dias para essa prova, sabendo que sabe tudo. O medo que você tem é de errar na hora da prova e depois se culpar de não ter estudado mais 20 minutos, como se esse tempinho fizesse diferença. Só uma horinha, vamos?

Alice passou de envergonhada para surpresa, nem ela tinha reparado em seus modos tão bem quanto Luís.

_Não sei, e se cair... _Recomeçou Alice.

_Olha, eu prometo que se você tirar nota ruim por minha causa na prova de amanhã eu faço o que você quiser. _Disse Luís arriscando todas as suas fichas.

_O que eu quiser? _Perguntou Alice alegre com a oportunidade.

_Sim, o que você quiser. _Disse Luís. _Eu estou sem chance de passar nessa prova, se eu ficar na Paula pelo menos vou ter companhia.

_Pára você não vai ficar não, nós dois vamos passar. _Disse Alice sendo gentil.

_Então vamos almoçar ou não juntos? _Perguntou Luís. _Você está me devendo mesmo lembra?

_Eu já pedi desculpa Luís aconteceu aquele negócio com minha irmã e tals. _Disse Alice envergonhada pelo motivo. _Faz dois anos já você não esquece daquilo não?

_Eu não fiquei esperando a noite toda, mas tá beleza, hoje não tem como fugir heim, deixa eu ir lá na sala pegar minhas coisas lá na sala vou sair mais cedo hoje. _Disse Luís se levantando.

_Mas como eu vou lá ao restaurante? Eu nem sei onde é. _Disse Alice.

_É aquele restaurante lá na esquina da avenida. Aquela que fica debaixo da rua do Salude. O restaurante chama Restaurante da Vó. _Disse Luís enquanto corria escada acima.

_Ah... Já lembrei onde é, pode deixar que eu vou. Até Lu! _Disse Alice.

De repente um dia normal como os outros começara a se transformar em um dos melhores novamente. Alice logo pensou em Anne e se teria alguma possibilidade dela estragar seus planos novamente, mas como ela estava já há dois anos na cadeia Alice não via nenhum problema surgir do horizonte, por enquanto. Mas mesmo assim seguiu confiante até a sala de aula para apanhar seus materiais, dar mais uma olhadinha para Luís e em seguida correu em casa para colocar uma roupa que parecesse casual, mas não muito velhinha. Ela queria parecer arrumada, mas sem exageros, como se ao vê-la Luís pensasse que aquela foi a primeira roupa que ela pegou no guarda-roupa, mas ao mesmo tempo ela não queria que ele pensasse que ela não se preparou devidamente para o encontro. Eu dou a dica: Os homens não reparam nesses detalhes.


Naquele mesmo instante, Anne não estava tão preocupada como sua irmã Alice. Sem muita opção o uniforme azul fazia de todas as detentas um grande exercito de mulheres privadas da vaidade. O que não impedia umas e outras de cortar os cabelos, tingi-los e outros produtos cosméticos que entravam na Penitenciária Feminina Maria da Glória de forma clandestina. Mais do que isso, esses produtos eu digo, para Anne eles não faziam diferença. Sua pele mesmo com hora marcada para tomar sol continuava perfeita: Um pêssego albino levemente rosado. Os cabelos compridos, sedosos, brilhantes, macios, soltos, sem pontas duplas a perfeição só vista apenas em comerciais de xampu francês. O corpo em forma, ainda mais com a dieta que ela recebia não intencional por parte da penitenciaria, mas por opção dela, que diante do nada saboroso cardápio oferecido preferiria às vezes ficar sem comer. Anne achava torturante privarem-na do direito de se vestir, o que sempre gostou de fazer e o que sempre a rendia elogios por suas combinações e montagens das mais perfeitas as deslumbrantemente brilhantes. A moda para ela não passava de um mero passatempo, mas a falta dela dentro da penitenciaria despertaria em Anne um desejo súbito pelo mundo fashion. Todas as manhãs (Fui modesto), todo o tempo seja para o almoço, ou o banho de sol Anne imaginava como se vestiria se tivesse acesso a suas peças regularmente atualizadas de acordo com a moda fora e dentro do Brasil.

Alana e Antônia se deliciavam com as histórias da jovem Anne, o contato com alguém da alta sociedade despertava algumas curiosidades. Anne respondia as perguntas sem constrangimento fazendo algumas vezes suas colegas de cela se morder de inveja de uma forma positiva ao pensarem como poderiam existir alguns com tanto e outros com tão pouco.

Alana tinha a raiz pobre e os frutos também. Sempre trabalhou como empregada doméstica como sua mãe e nunca chegou perto de nenhum luxo exceto segundo ela de uma vez ao receber o décimo terceiro que comprou uma garrafa de champanhe para o natal. Champanhe mesmo não foi Sidra não. Já Antônia morou durante toda sua vida na favela, cresceu e criou seus filhos lá. A convivência com o pai violento não a permitiu sonhar muito, isso a atrapalhou até nos estudos que teve que largar para se dedicar integralmente ao trabalho sendo ele de manicure, cabeleireira, doceira, e por fim empresária. Sim empresária. Antônia tinha seu próprio carrinho de bala que rendia uns 100 reais todo mês. Todo tem que começar de baixo ou você acha que Silvio Santos já nasceu com o baú cheio. Diferente das duas e de Silvio Santos, Anne já nasceu com o baú cheio. Regada sempre as mais sofisticadas comidas, bebidas, viagens, brinquedos, roupas e escolas ela impressionantemente não se colocava acima de ninguém, mesmo porque apesar da sua habitual loucura ela não se sobressairia em cima de suas novas amigas de cela, pois poderia sair de lá sem vida. Falemos então dos projetos de Anne para o futuro:

Numa bela tarde vendo o sol quadrado bater na parede oposta à sua cama, Anne se concentrou em seu filho como fazia sempre. E ao pensar nele ela sentia que alguma coisa estava faltando, algo que o deixava ainda mais distante, não o tornava humano, gente de verdade sabe? E se perguntou: “Qual é a primeira coisa que as mães fazem quando seus bebês nascem?” E como por intuição de mãe Antônia disse de sua cama:

_O Reginaldo vai fazer aniversário amanhã.

Reginaldo era o filho de Antônia que iria completar no dia seguinte aquele 11 anos. Mas vocês se perguntam qual a resposta para a pergunta de Anne? Está na frase de Antônia. Era o nome “Reginaldo” isso fez Anne achar o que estava faltando na memória de seu filho, um nome. Não Reginaldo, mas um nome de verdade. Os acontecimentos seguintes ao dia do nascimento do bebê de Anne não foram realmente generosos com ela para que ela se concentrasse em um nome para ele. E então decidiu que àquela hora era o momento certo, não por nada em especial, simplesmente por que lhe ocorreu o pensamento e também por não ter nada de melhor para fazer.

Prestes a completar três anos de idade o bebê por enquanto sem nome de Anne podia estar aquele momento em qualquer lugar de São Paulo, do Brasil ou do mundo isso se ele estivesse vivo. Anne sempre cogitava a morte dele, afinal depois de suas buscas frustradas não lhe restava nenhuma opção de onde ele poderia estar ou com quem.

_Lana, se você fosse ter um filho qual nome você ia dar pra ele? _Disse Anne inesperadamente.

_O quê? _Perguntou Alana assustada com a súbita pergunta da amiga.

_Se você tivesse um filho, qual nome você iria dar pra ele? _Repetiu Anne.

_Ah, entendi. _Disse Alana. _Você está pensando no seu filho não é?

_Aham. _Disse Anne.

_Ah, não sei Anne eu gosto muito de Gilberto. Ou então Philipe com ph, se não fica feio. _Disse Alana, animada com o novo assunto que surgiu.

_Que ph que nada. É bom colocar Washington, Clayton, Michael tudo nome estrangeiro. _Disse Antônia. _A gente não tem dinheiro pra ir pra lá não é, então. Coloca o nome de bacana, não precisa pagar.

_Mas o nome do seu filho não é Reginaldo? _Perguntou Anne.

_Não, mas isso foi por causa do meu avó que morreu um pouco antes de eu engravidar ai eu quis fazer uma homenagem entende? _Disse Antônia.

_Entendi. _Respondeu Anne. _É que eu estava pensando nele aqui e percebi que ele não tinha nome. Como assim meu filho sem nome.

_É verdade! Ele não tem nome. _Disse Alana. _Você gosta de quê?

_Eu gosto de uns nomes mais simples, mas é difícil pensar em um pra ficar pra sempre. _Disse Anne. _Eu penso nele também, a carinha dele deve pedir um nome.

_Isso é mentira. _Disse Antônia tentando animar Anne já que ela nunca viu a cara do moleque. _O meu não tem cara de Reginaldo não, tem cara de Michael.

As três riram.

_Eu posso homenagear alguém também. Minha família quem sabe. _Disse Anne, soando mais como um pensamento alto. _Mas eu tenho que pensar no futuro dele também, tem que ser um nome que não tenha apelidos, seja jovem, atual e que ele não seja zoado na escola. Imagina Floriano o tanto...

_Opa! Olha o respeito heim meu pai chamava Florindo. _Disse Alana.

As três se entreolharam e logo começaram a rir.

_Seria tão mais fácil se a gente escolhesse o nome quando crescesse, porque assim cada um teria o nome que quisesse. _Disse Anne.

_Mas Anne se ele estiver sendo cuidado por alguém sei lá, eles já devem ter dado um nome pra ele. _Disse Alana.

Anne não havia parado para pensar nisso, seja qualquer um o nome que ela escolhesse para seu filho ele não o teria, pois seja quem quer que o esteja criando, o chamando de filho, já havia resolvido essa questão há muito tempo, talvez até antes de roubá-lo dela.

_É verdade. _Disse Anne triste na sua voz agora embargada.

Percebendo a tristeza no olhar da amiga Antônia lançou um olhar feio a Alana e se levantou em direção a Anne e em seguida se sentou ao seu lado.

_O Anne, não fica assim. Olha, o nome é uma coisa muito especial, minha mãe dizia que quando a gente dá nome pra alguma coisa quer dizer que a gente ama aquela coisa. Entendeu? _Disse Antônia.

_Entendi. _Disse Anne segurando as lágrimas nos olhos.

_É verdade isso que a Antônia falou. _Disse Alana agora totalmente arrependida de ter lembrado isso a Anne. _Desculpa por ter falado aquilo. É que eu não tenho filhos não é, então não sei como é que é.

_Sem problemas Lana. _Disse Anne.

_Olha, dá nome pro seu filho a gente te ajuda. Mesmo que seja só pra lembrar dele. _Disse Antônia. _Vai ficar até mais fácil falar dele, porque é toda hora neném pra cá, bebê pra lá, seu menino. Um nome vai ser muito legal.

_É Anne, fala aí um! _Exclamou Alana. _Diz ai um agora sem pensar. Um, dois... Três!

Anne pensou por alguns segundos e disse rapidamente:

_Washington.

_Ai que lindo! É esse. _Disse Antônia animada.

_Credo! _Disse Alana automaticamente.

_Que credo menina. A Anne gostou não gostou Anne? _Perguntou Antônia olhando para Anne que tentou disfarçar a cara de desgosto pelo nome.

_Então, é melhor não né, deixa esse para o meu próximo filho. _Disse Antônia percebendo que o nome não havia agradado a todas.

_Então vai lá outro. _Disse Alana empolgada.

_Não assim não. _Disse Antônia. _Rápido assim não. Deixa ela pensar, aí ela fala, depois a gente diz se gostou ou não.

_Tá. Mas posso colocar qualquer nome? _perguntou Anne recuperando os ânimos de novo.

_Pode, qualquer um. _Disse Alana.

_Pode ser francês? _Perguntou Anne que adorava a França por dois motivos: Um por ser descendente de um francês e dois porque a França era a França, perfeitamente linda.

_Melhor ainda. _Disse Antônia.

Anne pensou em um nome Francês pra Homenagear seu país amado. E apenas dois lhe ocorreram, dois nomes que fossem realmente franceses, que lembrassem França a todo o momento que fosse dito. Eles eram Jean e Gérard. Pelo Obvio e pelo inusitado, Anne decidiu:

_É bem diferente gente, mas eu acho bonito. _Disse Anne encarando as curiosas fusas de Alana e Antônia. _Meu filho vai se chamar Gérard.

Ela escolheu o inusitado.

As duas ficaram ali olhando meio bobas tentando fazer caras de contente afinal o estado emocional da garota Anne não estava dos melhores e já que esse nome seria apenas, digamos que imaginário, que mal fazia fingir prazer ao dizê-lo. E como que podendo ler uma a mente da outra elas disseram:

_Lindo Anne! _Disse Antônia com um sorriso.

_É bonito mesmo. _Disse Alana não tão bem sucedida como Antônia ao fingir seu contentamento.

_Que bom. _Disse Anne também fingindo que não percebeu o descontentamento das amigas de cela. _Meu filho agora se chama Gérard.


Pra falar a verdade eu prefiro Jean, mas ela é a mãe não é? Ela que escolhe.


Dito isso o alarme para que as celas fossem abertas soou e isso avisava as detentas de que almoço ia ser servido, uma a uma as grades se rangeram nas dobradiças e se abriram como numa coreografia ensaiada.


Outro alarme tocava do outro lado da cidade. Alice atendia ao telefone rapidamente antes de sair para o tal almoço com Luís. O tal não. O almoço. Segundo seus planos o melhor de todos, dos que já passaram e dos que ainda viriam.

_Alô? _Disse Alice já prevendo quem seria do outro lado da linha.

_Eu estou aqui esperando a meia hora, tentando pensar em um motivo realmente sério para você me dar outro bolo e claro um motivo que não tivesse nada a ver com a prova da Paula. _Começou Luís. _Ai decidi te ligar dessa vez, pra ver qual seria sua desculpa. E confesso que foi uma batalha muito grande de mim com meu ego para discar esses números.

_Ai desculpa Luís, é que eu me esqueci da hora. Eu estava saindo agora. _Disse Alice envergonhada. _Eu já to indo me espera tchau!

Alice desligou o telefone, correu para o restaurante e no caminho se pos a pensar se desligar o telefone na cara de Luís atrapalharia alguma coisa. Mas depois do mal feito nada podia desfazê-lo. Diga isso para Alice que aproveitava essas oportunidades para flagelar sua alto-estima que nem era tão alta assim.

O restaurante não era nenhum espaço gourmet de respeito, não que ele não o merecesse, mas não era muito sofisticado. Era limpo, isso eu posso afirmar. Imaginem um restaurante no estilo de beira de estrada os forros da mesa num xadrez vermelho e branco, os devidos temperos em cima da mesa e um espaço consideravelmente pequeno para um restaurante. Quatro mesas disputavam espaço entre o salão, no balcão um homem de aparência abatida e cansada atendia as mesas, anotava os pedidos, preparava os refrescos naturais fechava as contas e ainda mexia no caixa. Alice nem reparara tanto nisso, nesses detalhes. Luís estava sentado a um canto tentando convencer o único garçom do restaurante a não tira-lo da mesa.

_Esperai, ela já está chegando. _Disse Luís ao garçom. _Aí chegou.

Alice estava com um vestido verde limão. Não se assustem, não é aquele estilo caneta marca texto, é mais suave, menos prejudicial aos olhos. Para ser mais sincero, e caso eu esteja descrevendo a cor errada imaginem então um verde claro. Imaginado? Então podemos seguir com a descrição: Um vestidinho verde claro terminado com pequenos babados lembrava uma camisola, não digo pelo tecido, nem pela renda, mas sim pelo modelo. As alçinhas sustentavam um meio circulo unido atrás por um zíper que no corpo de Alice ia até os joelhos.

_Desculpa o atraso. _Disse Alice se sentando a frente de Luís enquanto o garçom se afastava irritado.

_Eu ia ficar aqui até você aparecer. _Disse Luís sorridente. _Eu ia sair daqui só pro cemitério depois que o Antônio me matasse.

Os dois sorriram e Alice agradeceu internamente por ele não ter se zangado pelo atraso.

O almoço correu melhor do que as expectativas de Alice, do cardápio de comida mineira aos conhecimentos adquiridos com relação a Luís: Ele vinha de uma família de médicos como Alice, não tinha nenhum irmão, e seus pais ainda eram vivos. Não gostava de gastar o dinheiro que o pai lhe dava todo mês e o propôs ao invés disso sustentar o Salude. Desde os 16 anos Luís trabalhava primeiro, como a maioria dos jovens, em uma lanchonete no shopping, depois no mesmo shopping virou vendedor de uma loja de sapatos até ter que parar de trabalhar por causa da faculdade que exigia muito do seu tempo. O Salude surgiu junto com outro garoto da sala que também entrava como sócio no hospital voluntário. Ele havia namorado três vezes, e apenas um dos namoros durou tempo o bastante segundo Alice para que fosse considerado um namoro, quatro anos. Ele se apresentou romântico, até mesmo brega em certas ocasiões. Se for descrever o homem perfeito pra Alice só diga a palavra LUÍS. Ela define bem onde o homem atingiu a perfeição pra ela. Isso por que não comentamos os gostos musicais, literários e culturais dele. E que apesar de terem sidos citados no almoço não me cabe lista-los um a um tomaria muito do meu tempo e isso não nos interessa realmente já que o que rolou depois do almoço foi muito mais interessante.

_Adorei o almoço Luís, nós vamos subir lá pro Salude agora? _Disse Alice, satisfeita com tudo.

_Não. Antes eu quero te levar num lugar. _Disse Luís se levantando e segurando a mão de Alice carinhosamente.

Alice já de pé não teve forças para dizer, que já estava tarde e ela precisava estudar. Agora ela podia entender seu pai que dizia que namorar atrapalhava os estudos, e realmente atrapalhavam.

Os dois seguiram de carro até uma sorveteria e de lá Luís levou Alice até uma casa velha, num bairro afastado do centro.

_Que lugar é esse? _Perguntou Alice ao sair do carro e olhar aquela casa velha, caindo aos pedaços.

_E aí, bonita não é? _Disse Luís animado.

Com medo de desapontar Luís, ela não teve coragem de falar a verdade:

_É. Legal. _Mentiu Alice.

_Legal? _Perguntou Luís. _Essa casa é horrorosa Alice. Você é tão boa, que não tem nem coragem de falar a verdade.

_É feia mesmo. _Disse Alice sorrindo diante das risadas de Luís. _Pra que é? Heim pra que serve? Pára de rir!

_Foi mal! _Disse Luís.

_Mas é sério, para quê serve? _Perguntou Alice.

_Depois de reformada essa frente vai ficar melhor. _Disse Luís sorrindo. _agora vem cá.

Luís pegou na mão de Alice e isso a levou para as nuvens, como era bom estar ligado a ele mesmo que tão inocentemente. Os dois entraram pela casa vazia e seguiram até a porta dos fundos do que aparentemente pareceu ser a cozinha. Luís abriu a porta e a luz do dia tomou conta do cômodo.

_Agora fecha os olhos. _Pediu Luís.

_O quê? _Disse Alice descrente no pedido de Luís.

_Fecha os olhos. _Repetiu Luís sorrindo. _Por favor, é por que eu acho que vai ser mais legal se você ver de repente.

_Você acha? _Disse Alice sorrindo.

_Anda sô! Por favor! _Disse Luís e Alice não entendeu como ele poderia concentrar tanta doçura na voz. Ela faria qualquer coisa que ele pedisse com aquela voz, nem a morte era terrível o bastante caso ele pedisse um suicídio.

Então Alice fechou os olhos e as cegas seguiu as coordenadas de Luís.

_Calma, cuidado com a porta! Vem, vem devagar cuidado pra não cair. _Disse Luís segurando as mãos de Alice a frente do seu corpo, tomando um grande cuidado para não cair ao andar de costas. _Agora tem dois degraus, o primeiro agor... Cuidado! Não abre o olho.

Alice havia se desequilibrado nos degraus e isso fez com que Luís a agarrasse pela cintura, mas obedecendo não ao pedido, mas a ordem que Luís a dera de não abrir os olhos ela continuou até sentir debaixo dos pés as folhinhas secas que estalavam á medida que ela avançava no que imaginou ser um quintal velho, cheio de folhas secas e com algumas árvores mortas distribuídas aleatoriamente.

Luís parou de repente e pelo que percebeu Alice, o sentiu ao seu lado.

_Pode abrir. _Disse Luís e Alice o imaginou sorrindo ao dizer isso.

De repente ela abriu os olhos e se chocou ao ver o contrário do que imaginava. Para começar o tamanho do quintal era muito maior do que ela havia pensado, muito maior. Era quase impossível distinguir todas as flores que se espalhavam sobre o gramado verdinho que crescia junto a terra recém regada. Nas árvores que projetavam grandes sombras no jardim se dependuravam algumas cordas formando vários balanços de pneu. As trepadeiras subiam pelas paredes a tornando totalmente verde e em apenas alguns pontos era possível ver a cor escura do muro que cercava a propriedade. Alguns banquinhos de ferro foram espalhados por todo o lugar. Mais a um canto reservado uma piscina artificial imitava uma fonte natural de pedras formando um pequeno lago com alguns patos que boiavam tranquilamente sobre a água, alguns deles se esbaldavam na cachoeira que descia levemente fazendo um agradável barulhinho de água.

Era um belo quadro visto de frente só lhe faltava a moldura, um lindo jardim pintado levemente com toques e misturas de tintas com cores alegres e vivas que juntas se formavam em vários arbustos de flores aos pés das árvores esguias, grandes, enraizadas, grandes torres de marrom com véu verde cravejado de pequenos pontinhos laranja e amarelos que representavam as frutas. Era uma obra de arte o que futuramente Alice chamaria de Meu Jardim. Para concretizar seus pensamentos, aquele espaço era uma versão não muito menor do Jardim Secreto.

Alice rodeou o jardim a passos delicados em frente ao medo de danificar o gramado, sem palavras para expressar seu encantamento diante de natural beleza, ela nem parou para pensar nos motivos que a levaram até aquele lugar. Mas logo saiu do transe ambiental e perguntou:

_Que lugar é esse?

_Esse é o lugar que futuramente vai ser a sede do Salude. _Disse Luís. _Eu decidi reformar aqui fora primeiro porque pretendo mudar as diretrizes do nosso trabalho.

_Aqui virar sede do Salude? A gente mal dá conta de um hospital imagine dois, Luís. _Disse Alice.

_Não, a gente só vai ficar com esse. Aquele eu vou passar pra frente, não dá pra gente viver de caridade. _Disse Luís sério.

_Mas você decidiu isso assim, do nada? _Perguntou Alice.

_Não. _Disse Luís levando Alice até um banquinho mais próximo. _É porque a faculdade já está acabando a galera lá na sala já tem emprego fixo. E a gente? Você ainda tem a clínica do seu pai e eu.

_Meu pai já te ofereceu emprego lá, você não aceitou de orgulhoso que é. _Disse Alice sentando no banco ao lado de Luís.

_Eu sei Alice, e agradeço muito a atenção do seu pai. _Disse Luís. _mas eu queria ter meu próprio negócio, meu pai me ofereceu um dinheiro grande aí e eu decidi aceitar.

_E sem me gabar eu vou perguntar heim. _Disse Alice sorrindo. _E você quer minha ajuda pra erguer o novo Salude?

_Sim. _Disse Luís sorrindo. _Você é bem responsável e tem mais a cabeça no lugar do que eu.

_Esse lugar é perfeito, é lindo. _Disse Alice. _A sede vai ficar linda.

_Você está vendo aquela parte vazia ali na frente? Então eu vou aumentar a casa pra lá, vai ficar enorme lá dentro. _Disse Luís. _Agora a gente vai cobrar pelas consultas. No bairro não tem nenhum hospital particular por perto e é rodeado de bacanas.

_Vai ficar tudo perfeito, Luís. O lugar é perfeito, o bairro é ideal. Só a idéia que é um pouco diferente. _Disse Alice.

_É mas vai ser legal. _Começou Luís. _O novo Salude vai ter a cara de um hospital natural, experimental, mas vai ser totalmente profissional, a gente pode contratar a galera lá da facu pra ajudar a gente.

_Calma que ainda falta muito pra gente terminar a faculdade ainda e a casa nem está pronta. _Disse Alice.

_Alice as obras vão começar na segunda feira que vem, já está tudo pronto. _Disse Luís. _E aí o que você acha? Vai me ajudar a levantar isso aqui?

_Vou, claro que vou. _Disse Alice sorridente. _Mas sem presa a gente tem que estudar também e nos livrarmos do Salude antigo.

_Isso eu já ajeitei estou com um projeto de transformar o velho Salude em um posto medico comum, o chato é que aquele povo vai ter que depender do governo para se tratar. _Disse Luís. _Mas a gente não pode ajudar todo mundo não é.

_E temos que estudar ainda hoje. _Começou Alice se levantando. _Então faça o favor de me levar de volta.

_Não, não ainda não. _Disse Luís se levantando também.

_Porque? _Perguntou Alice curiosa. _Agora você vai me mostrar o quê? Depois do Jardim encantado o que vem dessa vez, o porão mágico?

Os dois riram um a frente do outro.

_Não. _Disse Luís. _É porque na verdade eu quero que você não estude.

_O quê? _Perguntou Alice.

_É porque assim você vai afundar na prova e vai poder me pedir o que quiser. _Disse Luís encarando Alice.

_Então você quer perder a aposta? _Disse Alice sem graça olhando para o lado evitando olhar para os olhos penetrantes de Luís.

_Eu só fiquei curioso, se caso você for mal na prova, o que não vai acontecer, o que você pediria pra mim. _Disse Luís ainda encarando Alice e ainda mais encantado com vergonha de sua sócia.

_Você quer que eu peça agora? _Disse Alice, sentindo seu rosto queimar.

_É. _Disse Luís. _O que você pediria, pode pedir agora que eu faço. Você vai tirar total na prova mesmo.

_Pára! Não vou nada. _Disse Alice envergonhada antes de tentar sair da saia justa. _Só vou se eu não estudar, por isso. Vamos embor...

Alice já estava virando o corpo quando Luís a tocou no braço:

_Alice deixa de ser boba, pede por favor. _Disse Luís apostando todas as fichas no seu pedido. _Pede agora.

Alice se virou lentamente pensando rapidamente no que não pareceria realmente grosseiro. “Um beijo, um beijo!” Alice pensava e lutava contra seu lado Anne que gritava: PEDE UM BEIJO! E quando teve a certeza de que recobrara seu lado Alice de ser ela disse:

_Eu quero um... Um beijo.

Eu acho que ela se enganou.

Assustada com o que disse, Alice passou de um rosa para um vermelho vibrante. Luís deu um breve sorriso antes de avançar e dar em Alice o melhor beijo da vida dela, não que ela tivesse muitos com qual comparar. Mas o que ela julgava ao sentir o calor da boca de Luís na dela era que aquele beijo ganhara de mil a zero de qualquer beijo caliente dado nas novelas.


Passados 20 anos depois daquele dia fatídico no Rio de Janeiro, com Anne Marrie nada mudou desde que ela entrou na Penitenciária Feminina Maria da Glória exceto das suas novas amizades com Alana e Antônia, que já haviam saído da prisão anos antes de Anne a deixar, os modos, os costumes, as palavras, o jeitinho inocente de ser ainda permaneciam os mesmos. Sabendo que iria ser libertada Anne levantou da cama e encarou com grande alegria pela última vez a cela na qual passara seus últimos 20 anos. A idade de nada afetou a nossa menina, ela permanecia ainda com a pele perfeita, o corpo, o cabelo e todo o resto em ótimo estado. Com 38 anos Anne mal imaginava os avanços que o mundo da beleza cosmética se cometeu, e pouco menos imaginava os absurdos feitos hoje na ponta de um bisturi para se ficar mais bonita. Digo isso por que mesmo diante de tanta tecnologia Anne não se renderia e nem precisava se render aos encantos das cirurgias plásticas. Ela estava muito empolgada por voltar ao mundo real, ter contato com outras pessoas, não só na hora de visitas, mas na hora que ela quisesse. A liberdade era doce, amarga por ser aguardada durante tanto tempo tornando o aprisionamento ainda mais azedo. Ver o sol nascer redondo era inspirador. Alice agora casada com Luís à visita pouco, pois dividia a tarefa de ser mãe, esposa, dona-de-casa e médica. A morte de Otton abalou pouco as meninas, pois elas já esperavam que o câncer o levasse mais cedo ou mais tarde. O dinheiro da herança foi dividido entre as garotas e a clínica Anne não fez objeção em dá-la para a irmã sem exigir nada em troca. Não só esses assuntos fúteis e supérfluos assombravam a mente de Anne, a procura de Gérard agora seria uma tarefa difícil, mas não impossível para uma mãe desesperada que já sabia de onde partiria em busca de seu filho.

Depois de se despedir de suas colegas, eu disse colegas de quarto e não amigas como Alana e Antônia, Anne seguiu com Celina até a mesma sala que há 20 anos ela havia trocado suas roupas por aquele uniforme azul. Josefa havia sido despedida depois de se envolver em constantes brigas com as detentas.

Era realmente bom estar do lado de fora novamente. O ano de 2008 havia apenas começado e o advogado da família, Cássio Reis, havia feito um trabalho brilhante durante todo o caso Anne Marrie conseguindo com que ela cumprisse os últimos anos de sua pena em liberdade. Alice estava deslumbrante a espera de Anne na porta da penitenciária, ela havia engordado alguns quilinhos, pois acabara de ter seu segundo filho. Alguns repórteres mostraram interesse por Anne e se colocaram a sua espera. Em liberdade Anne se despediu de Celina, dando-a um beijo nas bochechas e nas mãos enrugadas.

Enfim liberdade, Anne fechou os olhos diante da claridade da luz e saiu acompanhada de Cássio usando o mesmo vestido da época em que entrou na prisão. Rapidamente Alice foi ao encontro da irmã a abraçou em meio ao tumulto dos repórteres e a segurou na mão conduzindo-a até o carro. Mas uma pessoa fez Anne parar no caminho, de longe, da esquina da rua movimentada ela viu parada a última pessoa que ela imaginava encontrar aquele momento. Roger Fonseca avistava de longe nossa Anne Marrie. O que ele quer dela? Poderia você me responder essa pergunta?

Acho que não.