domingo, 18 de maio de 2008

Capítulo 3: Uma Visita Para Anne Marrie

Enrolada em um casaco velho que pegou antes de deixar o apartamento de Humberto, Anne andava pelas ruas de São Paulo, debaixo da chuva ela procurava um táxi para voltar para o hotel onde estava hospedada. Depois de sair escondida do prédio do ex-namorado, enquanto o porteiro cochilava na guarita, Anne estava caminhando há meia hora. A chuva já tinha lavado o sangue da sua mão, mas o casaco estava vermelho e seu peito doía muito. Se segurando nas paredes para não cair ela andou por quarteirões e a cada passo enfraquecia mais e mais. Ao chegar a uma esquina movimentada ela viu tudo rodando, sem perceber e poder controlar a força nas pernas, ela estava no chão em meio à sujeira do centro da capital paulista. Em flashes repentinos ela percebeu algumas pessoas se aproximarem e até tocarem nela, com os olhos ainda fechados percebeu que seu corpo estava sendo colocado sobre algo. Num esforço para abrir os olhos ela rapidamente pode ver alguns homens vestidos de branco sobre ela. Mais tarde voltou a abrir os olhos, percebeu que estava num lugar limpo e seco, seu peito não doía mais e conseguiu ver ao lado da cama de um quarto claro e arejado uma mulher. Ouviu seu nome várias vezes. Sonhou com uma passarela de moda em que todos os seus conhecidos estavam na platéia, sua mãe andava sobre um salto alto com um casaco sujo de sangue, enquanto um homem sem cabeça escorregava sobre o sangue no chão, ela comia pães num campo verde e tomava vinho com Humberto, várias crianças pulavam em uma ciranda enquanto ela girava no centro com um vestido xadrez rodado, cada quadrado se misturava no ar enquanto ela caia sobre milhares de flores fumegantes e Juliana a arrastava pelo braço por um corredor estreito e sujo num gesto especialmente bruto Anne foi jogada para o auto, muito, muito alto por várias vezes e cada vez que descia das alturas sua respiração faltava até ela cair em uma rua velha e mal acabada e ser perseguida por dois tigres um albino e uma pantera negra.

Alice era responsável por Humberto ainda estar vivo. Depois de receber o telefonema do Hotel Royal avisando que Anne havia saído, ela sem pensar em outro lugar mais lógico do que a casa de Humberto, ligou para Juliana que lhe deu o endereço. Ao chegar ao apartamento e ver a situação de saúde que se encontrava Beto, tratou logo de chamar a ambulância e sair pelas ruas atrás da irmã. Assim que soube qual era o hospital em que Anne estava internada foi logo tratar de transferi-la para a clínica da família. Estava ao lado da irmã o tempo todo enquanto a irmã se recuperava do ferimento no peito depois da briga que teve com o ex-namorado. Uma semana se passou e Alice passou as noites no hospital, conversou com Anne poucas vezes, pois a irmã dormia muito. Otton se recusava a ajudar a filha, seu orgulho estava ferido, ele sofria sozinho, calado no quarto, mas não deixava que os outros notassem alguma comoção da parte dele pelo o que aconteceu com Anne.

A família de Humberto estava indignada e disposta a processar Anne, a prisão da garota confortaria os parentes e saciaria a sede deles por justiça, Humberto resistiu aos ferimentos por pouco, graças ao atendimento exclusivamente rápido que recebeu. Será que foi sorte dele ou a Anne que tinha muito azar? Apesar do cruel desejo de prender a garota todos sabiam que Anne era menor e não responderia nenhum processo, nem coisa parecida.

Anne virou notícia em todos os jornais, estampava as primeiras páginas da maioria dos tablóides, virou assunto de debates e discussões em escolas, organizações e programas de TV, que discutiam o comportamento dos jovens da época. Anne passou a ser exemplo de mau comportamento, os pais vigiavam mais as filhas a partir daquele dia e diziam com tom reprovador: “_Continue assim, que você vai acabar como Anne Marrie, a grávida assassina”. Ela dividia opiniões da população, uns acreditavam na inocência dela, outros defendiam o lado da família e amigos de Humberto, colocado no caso como o pobre namorado, vítima da louca Anne Marrie.

O clima na casa dos DeVille não era dos melhores, Alice brigava diariamente com o pai que ainda se recusava a ajudar Anne. Proibida de visitar a irmã, Alice era obrigada a sair escondida todos os dias para vê-la no hospital.

No dia em que recebeu alta do hospital Anne já acordada conversou com a irmã e sem derramar nenhuma lágrima, ela se manteve firme enquanto narrava à noite em que tentou matar seu namorado. Alice segurou para não dizer: _ “Eu te avisei.”. Mas ficou calada enquanto ouvia o terror que a irmã passou dentro do apartamento de Humberto, Alice às vezes não reconhecia a irmã, que desde pequena tinha algumas ações avessas a qualquer atitude de criança, parecia uma pessoa boa, mas alguns de seus atos eram estranhos e incompreendidos.

“O fato de ela ter tentado matar o namorado não era de se estranhar, afinal foi em legítima defesa”. Alice repetia essa última frase na cabeça, forçando a crença de que a irmã fosse normal como às outras pessoas. Mas era impossível, Anne Marrie, era realmente um ser humano singular, pelo menos dos que Alice tinha conhecimento. O último abraço descrito cuidadosamente por Anne, veio a confirmar ainda mais as teorias psiquiátricas de Alice. Anne amava demais as pessoas, todos. Na verdade Juliana Lessa nunca chegou a ser amiga de Anne Marrie, amiga de verdade mesmo nunca, sempre foi uma aproximação forçada por ambos os pais que se conheciam há muitos anos, por isso Anne a traiu, concluiu Alice. O que não justificava muita coisa, afinal será que a população entenderia dessa forma também?

Anne vestia agora uma calça jeans até o estômago de onde saiam até os ombros o suspensório xadrez colocado sobre a blusa rosa de manguinha fofas, que no formato lembravam pequenos morangos. Os cabelos castanhos cuidadosamente penteados, caíam sobre as costas e os ombros, no rosto esculpido por Deus, em uma de suas melhores obras, o rosa da maquiagem se destacava sobre a palidez aparente dos últimos dias de moribunda no hospital.

Alice entrou no quarto do hospital acompanhada de uma garota, praticamente na mesma idade de Anne. Juliana tinha os cabelos até os ombros e lisos como fitas de cetim, que podem também ser comparadas por outra característica, o brilho dourado que emitiam, mas seu rosto diferente do cabelo não era tão têxtil. E se houvesse algum tecido para compará-los, o linho seria apropriado rústico e grosseiro, o que não excluía a beleza da peça.

Anne se sentia poderosa, fora a beleza superior obviamente, ela saiu da história toda com algo que Juliana não conseguiu quando namorava Humberto, um filho. Naquele momento ela não sabia julgar se isso era bom ou ruim, ou se fora isso que movera Juliana até o hospital. Será que ela vai me agradecer por ter matado o Humberto? Anne riu quando acabou de pensar nisso.

É verdade. Diferente de todos Anne ainda acreditava que havia matado seu ex-namorado.

_Do quê você tá rindo Anne? _Perguntou Alice, que mesmo sabendo a resposta queria avisar a irmã no tom de voz especialmente modificado: “_Olha temos uma estranha aqui, e você está saindo do hospital depois de uma semana, se recuperando de um corte no peito que quase te matou, após ter tentado matar o próprio namorado e que ops!... Já foi namorado dela também.”

_Nada. _Disse Anne de cabeça baixa, aparentemente entendeu o recado da irmã.

Juliana evitava olhar para o rosto da ex-amiga, talvez nem tenha percebido o sorriso de Anne Marrie e olhando do teto para Alice começou:

_Tá doendo ainda?

Anne ainda envolvida em pensamentos hilários que respondiam a visita repentina se assustou com a voz da ex-amiga que não ouvia há tanto tempo. As palavras de Juliana arrepiaram os pelinhos da nuca de Anne. Estranho.

_Não, já parou. _Disse Anne, depois de um esforço enorme para deixar a voz audível. _O que você está fazendo aqui?

Alice olhou para Juliana que retornou com o olhar: “_Me tira daqui!” Mas Alice manteve o seu habitual olhar meigo e doce, se for possível imaginar isso.

_Eu... Eu vim aqui durante a semana toda com... A... Sua ir... A Alice. _Disse Juliana assustada com a própria mutilação que fez a frase.

Anne segurava o riso na frente das duas, e no rosto usava uma máscara extremamente séria, mas que Alice já era capaz de ver através com sua visão raio-x de super-irmã. Como daquela vez que o peixinho dourado apareceu morto no aquário na casa dos DeVille e Anne ainda chorava e abraçava a irmã mais velha, que podia sentir ainda nas mãos da caçula o cheiro de peixe.

_Anne? A Juliana esteve aqui a semana toda te visitando, ela vem há muito tempo tentando te pedir desculpas, e está disposta a falar a seu favor para a imprensa. _Disse Alice, com compaixão na voz e olhando de Anne para Juliana que olhava para uma mosca invisível voando pelo quarto.

_Desculpas? Pra quê? Você devia ter evitado essa situação Lice, a Ju... Quer dizer, a Juliana, tá morrendo de vergonha, olha aí. _Disse Anne que agora voltava a se vestir, calçando os sapatos de boneca.

Juliana agora olhava para porta de saída.

_Anne deixa de ser chata, depois do que vocês duas passaram nas mãos daquele safado, vocês tem mais coisas em comum do que antes. _Disse Alice, antes que Juliana atravessasse a parede.

_Lice, a única coisa que a gente tinha em comum era o Humberto, agora eu sou a assassina dele e mãe do filho dele, e ela só é a ex dele. _Disse Anne, corajosa.

_Mas ele não morreu. _Disse Juliana, levando a mão à boca depois de assustar com o som extremamente alto da sua voz que ecoou pelo quarto vazio.

_Como assim? _Anne agora segurando o riso e olhando para Alice esperando uma resposta certa.

Alice olhou para Juliana reprimindo a garota com o olhar. Juliana estava com vontade de sair correndo, mas mesmo assim não o fez.

_É Anne, ele... Não morreu. _Alice disse com os olhos fechados sabendo da reação da irmã. E mais assustada com o que Juliana acharia.

Anne continuou parada ao pé da cama olhando para Alice e nem colocava os olhos em Juliana que agora voltava a virar para ela lentamente, curiosa com a reação da ex-amiga.

Anne estava de volta ao apartamento de Humberto, abraçada com ele, envolta no sangue dos dois que se misturava em torno do seu corpo. Humberto ainda respirava lentamente e a força do sangue que fluía do pescoço dele fazia cócegas no pescoço dela. Quando Anne se pôs de pé com muito esforço para tirar o namorado de cima de seu corpo, ela ficou parada por um tempo admirando como era bonito ver Humberto ali. A cor azul nos olhos dele se destacava tanto com o vermelho do resto do cômodo. E quando aquilo começou a ficar sem graça, o azul do olho dele foi ficando cinza, o vermelho vivo do sangue se tornou vinho e Anne se deu conta do que tinha feito. Sua mente começou a agir pela primeira vez no lugar do coração. Que Homem horroroso estava ali agora. Um grande cafajeste, usando ela como objeto pra suas insanas aventuras amorosas com garotas mais novas. A sarjeta parecia tão convidativa naquele momento, era mais limpa do aquele lugar. E ela não estava levando em consideração a bagunça da festinha particular de Humberto com a vadia de aluguel. Ela olhava pro sangue assustada, como uma pessoa só pode ser capaz de expelir tanto sangue sujo daquele jeito? Talvez o trabalho intenso que o sangue vazia frequentemente para bombear o seu pênis a toda hora, para suas constantes experiências sexuais, e que seja lembrado, cada uma delas com uma diferente parceira inocente. Ou paga. Tudo isso tenha feito o sangue veloz e furioso, estando sempre na correria. Como um homem pode ser tão baixo a ponto de fazer o que fez com ela, Anne Marrie DeVille? Sem pensar, sem sentir compaixão, pena, ou saudade. Anne saiu do apartamento com dificuldades devido ao seu ferimento, apanhando um casaco no cabide perto a porta. Deixando pra trás o seu grande e único amor, mas que não podia amar. Não por ela, mas o que os outros iriam dizer dela. Matá-lo era uma forma de impedir seu instinto de amar de amar. Era Anne pela primeira vez sendo racional na vida.

O coração dela voltou a funcionar naquele momento, a bater de novo por Humberto, um sopro subiu pela sua espinha e os músculos do rosto começaram a se contorcer e antes mesmo que ela pudesse controlar, seu cérebro obrigá-la a fechar a boca e Alice percebesse o que viria depois de uma declaração dessas, Anne já estava mostrando todos os dentes em um largo sorriso, os olhos também brilhavam feito esmeraldas em água corrente com a luz do sol as atravessando.

Alice ficou tão assustada com aquilo, não por ela, mas com medo da reação de Juliana na frente do sorriso de Anne, que num ato de total impulso se aproximou da irmã e a segurou no braço deixando o rosto das duas próximos demais para de distinguir de quem era a cara.

_Anne não haja como se nada tivesse acontecido, você não queria ter matado ele né. E pára de rir. _Sussurrou Alice no ouvido de Anne, que na mesma hora retomou os sentidos e tirou o sorriso do rosto.

Queria Anne que Juliana não estivesse ali naquele momento, ela a olhava abismada. Alice a soltou logo que percebeu que havia perdido a compostura, e sua habitual meiguice.

_Lice? Você queria que eu o matasse? Seria pior pra mim não é? Eu não fico feliz por ele, lógico que não. _Mentiu Anne, mas continuou: _É por mim. Eu não queria ser lembrada como uma assassina, não mesmo. Ele não merecia morrer mesmo, pelo menos agora ele está sofrendo no hospital. Espero. Eu vi ele lá caído, esguichando sangue. Ele tá sofrendo, igual eu e a J...

Juliana estava com lágrimas nos olhos que escorreram lentamente pelo seu rosto encostou em sua boca extremamente fina, mais parecia uma linha no papel branco. E fez menção de falar, quando Alice interrompeu:

_Anne você não pode contar como você me contou, você está me entendendo? Eles não entenderiam e talvez te internassem. _Disse Alice, com o tom da voz igual ao de uma criança dando uma bronca na própria boneca. _Ela veio aqui pra te ajudar. Se ela contar a imprensa o que aconteceu com ela e o Humberto, a situação pro lado dele vai piorar. E talvez as outras que já passaram pelas mãos dele e que sofreram danos muito maiores do que ele, ou vocês, sabe lá, quem sabe elas não têm coragem de falar também. Ou pais, ou mães. O que interessa é que eles lá fora já te colocaram na cruz, e você tem que descer viu, se não você vai ser apedrejada na rua por aqueles fanáticos oportunistas, que aproveitam de uma situação delicada dessas pra vender jornal, se bem que a culpa não é deles eu sei disso, o pior é quem quer ler um tipo de notícias vazia dessas.

_Mas e a minha versão, só eu que estava lá, ninguém mais. _Anne falava com a voz superior se achando a maior das criaturas, pelo menos da Juliana.

_Mas é pra isso que ela tá aqui meo. Pra te ajudar, se ela falar quem o Humberto era pra imprensa, eles vão acreditar em você. _Disse Alice.

_Ela não vai falar nada não, ela ainda tem teto pra morar e vai querer continuar nele, mas se o pai dela souber, ela perde tudo. _Disse Anne abaixada sobre a perna enquanto puxava os sapatinhos de boneca nos pezinhos delicados e rosados. Mesmo porque não teria coragem de dizer metade do que disse se olhasse para o rosto de Juliana.

_Ela... _Começou Alice.

_Eu já saí de casa. _Disse Juliana com a voz embargada.

O silêncio que seguiu no quarto foi torturante, Anne queria continuar abaixada, mas ficaria estranho fingir procurar algum anel. Então se pos de pé lentamente.

_Quando saiu nos jornais que você tinha machucado ele, eu juro que fiquei feliz. Ele não merece pena de ninguém e é só isso que ele está ganhando de todas as pessoas que estão te culpando. Eu sei que você, se fez o que fez, foi porque ele mereceu. Ele fez o mesmo comigo, quando me deu aquele remédio e eu não abortei o bebê, ele me jogou no chão e me obrigou a tomar um chá lá. Doeu muito perder um neném, na hora somente a dor física mesmo, mas quando cheguei em casa, percebi a furada que eu tinha entrado e te agradeci muito por estar namorando com ele, por tirar ele da minha vida de vez. Mas quando li no jornal que ele estava nas últimas graças a você, eu sabia o que realmente tinha acontecido, ainda mais que você está grávida, eu sabia. _Juliana passava a mão no rosto pra secar as lágrimas e também para não morrer afogada no próprio choro. E tomando fôlego, inspirando e expirando fortemente, ela continuou: _Quando sua irmã me pediu pra falar para imprensa o que tinha acontecido comigo, eu não podia fugir, não mesmo, não mais. Escondi até do meu pai o que aconteceu, o que não foi fácil, mas resolvi contar e não deu outra também fui pra rua viu! Pelo menos agora você tem companhia pra dividir o papelão. _Sorriu forçadamente. _Não é por você, eu devia isso a mim. Tentar me redimir diante do que fiz por causa de um homem que não merecia nada de ninguém, nada mesmo. O seu neném vai ser muito feliz viu, e se depender de mim eu vou sempre ajudar. Não me entenda mal, mas depois que perdi o meu, eu queria muito ter um, mas o médico disse que somente com um tratamento muito avançado. Então se você quiser a gente pode voltar a ser amigas de novo e dessa vez eu te garanto não vai ter homem nenhum pra nos separar. Heim?

Alice secava as lágrimas no rosto molhado e olhava para Anne que mantinha a mesma expressão desde quando Juliana começou a falar.

Anne viu agora que elas tinham muito em comum, não somente o mesmo ex, mas a perda de muitas coisas, de sonhos, amores, pessoas, família. Totalmente comovida Anne se pôs em volta da amiga, abraçando-a o mais forte que podia. Via além de Alice, mais alguém com quem podia contar. Uma amiga de verdade, como com qualquer outra, mas uma das melhores. Um amor novo surgia naquele momento, um amor novo para Anne. A amizade.

As três continuaram no quarto a conversar sentadas na cama e o sol da manhã invadia o quarto por entre as persianas lançando feixes de luz nos rostos das meninas enquanto Anne contava animada para Juliana o que tinha acontecido há uma semana atrás.

Marcada para dez horas da manhã a alta de Anne Marrie, seria coberta por toda a imprensa que acompanhava o caso da “Jovem Grávida Assassina”. Do outro lado da porta do quarto já era possível ouvir os repórteres e a multidão que se aglomerava a frente do hospital. O circo estava armado e pronto para Anne subir até o alto do picadeiro e se balançar na corda bamba.

Alice era justa primeiramente, começou a discutir quando a irmã disse que recusaria o advogado. Ela achava a proposta da irmã um tanto quanto insana. Estar em uma situação dessas sem um representante da lei ao seu lado, para orientar e livrar seu pescoço dos canibais dos bons costumes.

Alice tomou dianteira ao saírem do quarto empunhando a mala da irmã na mão, Ju e Anne vinham logo atrás lado a lado. Os repórteres se batiam do lado de fora, alguns se arriscavam em cima dos carros e até dos postes pra pegar a melhor foto do rosto de Anne Marrie e não esperavam ver um sorriso nele. Mas eles não contavam com a genialidade de Alice maravilhosa, dias antes havia feito um acordo com uma das enfermeiras que as deixariam sair pela entrada dos fundos. Estamos falando de dinheiro, muito dinheiro, a imprensa também era provida dessas idéias para conseguirem o que quisessem, mas ela não tinha um pai rico como o de Alice e nem era dona da clínica. Do lado contrário a entrada da clínica as três se dispuseram a andar por corredores largos e limpos, delicadamente decorado com as mais modernas novidades da época. Com o táxi a espera das três a porta lateral da clínica se abriu lentamente e as três escorregaram para dentro do carro, logo passando pela rua de trás do prédio para não provocar uma correria desesperada atrás do veículo em que elas estavam.

Dia 29 de março de 1987, Anne estava sentada no teto da sua nova casa, onde moravam ela e Juliana. Um presente da mãe de Juliana. Simples e modesta, lembrava uma casa de boneca, era rosa e azul, com uma arquitetura diferente de todas as casas que Anne já ouvira falar na vida e provavelmente qualquer um nunca tenha visto um castelo tão pequeno que ao entrar era instintivo se abaixar à cabeça com medo de encostar a cabeça no teto. Pura ilusão. Era até espaçosa pra duas. Sentada no teto como costumava fazer todos os dias depois do almoço para se aproximar das árvores e sentir o aroma do verde, as folhas encostarem-se ao seu rosto e para os ouvidos o som perfeito do canto dos pássaros. Era uma vida boa, nada com que ela sonhara um dia, mais especialmente arranjada de última hora e estava ótima. Passados exatos um mês depois que saiu do hospital, era natural que uma gravidez de três meses começasse a esticar a pele do abdômen perfeito de Anne, a barriguinha já estava aparecendo, às vezes ela até achava que sentia o neném chutar, mas nada que uma boa conversa com ela mesma a tirasse a ilusão.

A imprensa já havia esquecido Anne, tiraram algumas fotos que estamparam os jornais por algum tempo, sempre quando entrevistavam a família de Humberto e quando o próprio Humberto deu sua versão da história. A família dele ainda não tinha tomada nenhuma providência judicial, sabiam da fama do herdeiro galinha e também sabiam que Anne estava com Juliana que também iria contra ele caso alguém falasse alguma coisa. A vida pra ele continuou a mesma. Recuperado dos ferimentos, mas ainda de repouso em casa, outra casa, ele marcou o noivado com Poliana. E todos tentavam se concentrar nos preparativos do casamento para abafar o escândalo recente.

Estar acordada para Anne naquele último mês era o melhor que lhe podia acontecer, as noites eram longas e mal dormidas. Se dormia, tinha péssimos pesadelos com Humberto, e se acordava no meio da noite sempre ouvia algo fora da janela e jurava que também era ele. Vivendo sobre o medo constante da possível vingança de Humberto, Anne ajudava Juliana com as coisas da casa, como tarefas domésticas, compras e decoração. Soraia , mãe de Juliana, e Alice as visitavam com freqüência, sempre lhes dando dinheiro e assistência. Mas as duas estavam se dando muito bem, Juliana na verdade sempre foi uma ótima amiga, muito prestativa e cuidadosa com Anne, mas antes Anne nem ligava e nem chegava a notar nenhum esforço, mas agora, ela não só reparava na dedicação da amiga a amizade das duas, como sempre se dispunha a ajudar no que Juliana quisesse. A vida não podia ser mais perfeita, tirando a noite, somente o dia. Então fica assim: Os dias não podiam ser mais perfeitos. Até aquele dia, o dia 29 de março de 1987.

Ainda sentada no alto da casa se segurando nas telhas que ainda se mantinham firmes apesar do aparente tempo em que ali estavam, Anne estava com os olhos fechados, usando os outros sentidos para se aproveitar aquele simples pedacinho de lugar, que nem era tão belo assim, tirando a casa é claro. Mesmo com as pálpebras baixas, a luz do dia foi indo embora, saindo devagar por entre as nuvens, sugada pelos ventos que a arrastava para outro lugar. Estranhando o fato Anne levanta os olhos em busca de esclarecimento. Mas nada estava claro mais como minutos atrás, um grande crepúsculo sombrio cobria cada centímetro daquele lugar incomum. O telhado ainda quente se encontrava debaixo daquela garota assustada, que agora via Humberto em todos os lugares, se escondendo atrás da árvore do jardim, do carro que estava na rua, agachado na grama da casa em frente, enfim em todos os lugares. Juliana apareceu embaixo de Anne caminhando para o meio da rua para observar o que estava acontecendo. Anne podia ver bem melhor dali, que era mais alto. Um eclipse tomava conta dos céus, cobrindo o sol por inteiro estava uma bola negra, soltando pelas bordas flechas douradas que iluminavam pouco lá em baixo. Depois de alguns minutos Anne desceu para se juntar a amiga no jardim. Hipnotizadas pela imagem celestial as duas se manteram ali como muitos vizinhos que também se encontravam na rua para ver o fenômeno. Quando baixou o olhar por um minuto quando realmente sentiu o bebê chutar, Anne vê se aproximando devagar, a pessoa que ela jamais imaginou encontrar de novo, não em vida.

Otton caminhava de cabeça baixa na direção das garotas que agora o olhavam boquiabertas. Juliana olhava de um para o outro e não podia acreditar na visita de Anne Marrie.

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